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O valor da creche e pré-escolar: a cultura, a economia, o poder dos pais e a saúde infantil

Atualizado: 11 de set. de 2022



Dulce Cruz @erva_dulce / Joana Silva @justnaturalplease / Sara e Felipa @educa.sao


Dulce Cruz Mãe formada na Pedagogia Pikler

Joana Silva Mãe formada em Parentalidade Neurocompativel

Felipa Vieira e Sara Gomes Educadoras de Infância com pós-graducação em Pedagogia Waldorf e larga experiência em Creche e Jardim de Infância




Notas: para simplificar a enunciação no texto, designamos por “bebé” todas as pessoas na faixa etária dos zero aos três anos; O uso de pré-escola neste contexto, é para denominar o que chamamos jardim de infância, tudo o que é cuidados e educação fora do contexto do lar.


A creche é uma necessidade dos bebés?


A creche não é uma necessidade dos bebés. Os bebés precisam de orbitar de forma permanente em torno de um adulto com quem tenham uma relação de apego, um vínculo seguro. De forma geral essa pessoa é a mãe, podendo obviamente ser outra pessoa em algumas circunstâncias. E esta proximidade tem que ser praticamente constante nos primeiros anos de vida, pois o instinto de apego da criança é tão forte que a criança não consegue ficar na ausência deste vínculo sem que isso lhe seja prejudicial a nível emocional, cognitivo e mesmo físico.


Nos primeiros anos de vida a dependência fisiológica e emocional no adulto de referência é tão grande que a nossa espécie evoluiu de forma a garantir que bebé/criança e adulto de referência iriam viver nesta fusão de forma a garantir a sua sobrevivência e perpetuação da espécie. Por outras palavras, foram os bebés que transportaram em si a informação genética que determinava este comportamento de orbitar em torno da mãe e de expressar de forma nítida o desconforto na sua ausência que mais sobreviveram (porque foram cuidados e alimentados), e mais se reproduziram fazendo perpetuar este comportamento evolutivo até aos bebés de hoje.


A creche responderia às necessidade dos bebés se esta fosse um local onde o bebé pudesse estar acompanhado da sua figura de referência principal (geralmente a mãe) juntamente com outras famílias, com outros bebés e cuidadores que prestassem apoio a todos (não só aos bebés mas também às mães e aos pais), onde o bebé pudesse ir criando vínculos seguros com vários cuidadores, respeitando o seu ritmo individual e o ritmo de cada família, sem separação forçada ou precoce até que uma nova figura de referência permita a ausência segura do cuidador principal. Esse talvez fosse um modelo mais próximo ao que tivemos durante 99% do tempo de existência da humanidade - o cuidado dos bebés em tribo, orbitando em torno da mãe mas também com múltiplos outros cuidadores próximos (outras mulheres e mesmo homens da tribo, familiares diretos ou não). É para esse tipo de cuidados que os bebés estão geneticamente e evolutivamente adaptados.


No formato atual, em que temos forçosamente a separação do bebé ou da criança da sua figura de referência para ficar ao cuidado de adultos com os quais muitas vezes nem houve um contacto próximo que possibilitasse a criação de qualquer tipo de vínculo, facilmente podemos compreender que a creche está longe de ser aquilo que o bebé precisa. As fases de adaptação são deficitárias, muitas vezes inexistentes, e inadequadas às reais necessidades e capacidades do bebé. O bebé fica ao cuidado de um adulto que tem também a seu cuidado um número significativo de outros bebés, invertendo assim a ordem natural das coisas: um adulto a cuidar de vários bebés em vez de um bebé a ser cuidado por vários adultos.


“As crianças não precisam de aprender como lidar com a separação. Em vez disso, as crianças precisam desenvolver a capacidade de manter a ligação na separação.” - Gordon Neufeld


Gordon Neufeld, psicólogo e investigador canadiano, especialista reconhecido em desenvolvimento infantil, é peremptório a afirmar: as crianças estão prontas para a separação que a instituição escolar implica quando 1. estão suficientemente ligadas à figura de referência e conseguem manter essa ligação mesmo na separação, não a substituindo, e 2. conseguem manter a sua individualidade aquando da interação com os pares. Estas são capacidades que o psicólogo afirma começarem a surgir entre os 5 e os 7 anos de idade. É entre estas idades, de forma geral, que as crianças conseguem sentir o amor dos pais, mesmo na sua ausência, e conseguem manter a sua individualidade (os seus gostos, as suas preferências, os seus desejos) mesmo interagindo com os pares de forma mais constante.


Significa isto que nenhuma criança deveria ir à escola antes dos 5-7 anos? Não necessariamente. Significa sim que a forma como as crianças são institucionalizadas deve ser bastante cuidadosa, sobretudo se falamos de bebés e crianças até esta idade. Devemos garantir que a principal necessidade dos bebés e crianças é permanentemente satisfeita durante os períodos de separação dos progenitores: a necessidade de apego.


A necessidade de apego é na realidade a satisfação de um instinto humano básico (o instinto de apego). Este termo foi introduzido por John Bowlby, um psicanalista inglês que entre os anos 50 e 90 se dedicou a estudar a forma como a ligação entre o bebé e a figura de referência se estabelece e que implicações tem a nível emocional e social. Bowlby percebeu que a relação de apego com a figura de referência (geralmente a mãe) era tão importante que influenciava a qualidade de todas as outras relações que o bebé viesse a estabelecer.


As crias humanas, assim como a maior parte das crias mamíferas, nascem com o instinto de criarem esta relação de apego com pelo menos uma figura de referência. É uma questão de sobrevivência que certamente mantivemos até hoje na nossa espécie porque nos deu vantagem evolutiva. As crias com este instinto de apego bem prevalente certamente conseguiram ser melhor cuidadas e protegidas nos seus primeiros anos de vida (a fase mais vulnerável da sua vida) garantindo assim a sua sobrevivência até à idade reprodutiva e passagem desta informação genética às gerações seguintes. Como escreveu a Laura Sanches, psicóloga clínica e autora, no seu livro Amar não basta “A primeira fonte de stress para qualquer bebé ou criança é a impossibilidade de estabelecer esse vínculo ou as dificuldades persistentes que possam surgir sempre que tenta fazê-lo”.


Este instinto de apego é tão forte à nascença que a grande maioria dos bebés protesta se não sente o toque e o embalo da sua figura de referência, e assim se mantém nos primeiros anos de vida, sendo que, com o crescimento, a distância para explorar o mundo em seu redor vai progressivamente aumentando, assente no conforto e na certeza que a sua figura de referência está próxima e pronta para o atender e proteger sempre que necessário.


O que acontece com a entrada na creche é uma quebra momentânea desta ligação, que como referimos, nestes primeiros anos de vida é muito física e requer proximidade. O bebé é deixado ao cuidado de alguém que ainda não conhece bem e com quem ainda não estabeleceu um vínculo seguro.


A boa notícia é que os bebés conseguem estabelecer várias relações de apego seguros em simultâneo. Esta é também a visão que a psicologia evolutiva nos traz e que vem complementar as observações de Bowlby. Prova disso é a boa ligação que os bebés estabelecem com o pai ou com os avós, mesmo sendo a mãe a figura de apego principal (ou vice versa). Terá sido com o suporte de vários vínculos seguros com os elementos da tribo que as crias humanas prosperaram ao longo da nossa história evolutiva e é para isso que estão perfeitamente adaptados. Então, para um bebé ficar emocionalmente bem ao cuidado de alguém que ainda não é sua figura de referência, esse cuidador precisa de permitir que o bebé possa estabelecer uma relação de apego seguro consigo. Este é um processo que infelizmente não acontece da melhor forma nos períodos de adaptação escolar, sobretudo nos últimos anos com todas as restrições devidas à pandemia. Este processo requer tempo e disponibilidade por parte dos pais e dos profissionais para que a criança sinta que há uma relação de confiança existente entre ambos. A criança só conseguirá criar essa relação de apego se sentir que o novo cuidador é alguém de sua confiança e da confiança dos pais. Isto é algo muito orgânico que não se faz numa semana nem muito menos com pais à porta da escola, uma das preocupações centrais que levou, em 2021, à criação do movimento Assim Não é Escola.




Mas a creche não faz falta aos bebés para socializarem e para aprenderem?


Nas últimas décadas, com a mulher cada vez mais integrada no mercado de trabalho, com as curtas licenças de maternidade que se praticam em Portugal, e com os avós mais frequentemente longe ou indisponíveis para ajudar a cuidar, colocar os bebés na creche ao fim de poucos meses após o seu nascimento tornou-se uma prática normalizada e um recurso utilizado pela esmagadora maioria das famílias. Mesmo quando há a possibilidade de um dos progenitores ou outro familiar ficar com o bebé por mais algum tempo, muitas famílias optam por colocar os bebés na creche (ou sentem-se socialmente pressionadas a fazê-lo) por acreditarem que será o melhor para ele ou por receio que este fique prejudicado no seu desenvolvimento. Navegamos entre a narrativa da creche ser “um mal necessário” ou ser algo que “faz bem ao bébé” e de que ele precisa. Rapidamente passámos a acreditar que a creche é uma necessidade do bebé pois nela pode socializar com os pares e fazer atividades direcionadas por adultos especializados em pedagogia e em educação de infância. Talvez sirva de alívio aos pais que, entre a espada e a parede, podem assim aliviar um pouco o peso da culpa de não poderem estar com os seus bebés por mais tempo, pois não lhes resta alternativa.

Esta crença de que os bebés necessitam de socializar com os pares ou fazer muitas atividades direcionadas pelo adulto está desfasada com os conhecimentos atuais sobre desenvolvimento infantil. Até por volta dos três/quatro anos, as crianças não têm necessidade de passar grandes períodos de tempo com os pares. A grande maioria dos bebés não nutre sequer interesse nos pares, dada a sua natureza egocêntrica e focada nos seus adultos de referência. Alguns bebés poderão mostrar interesse em interagir com os pares mas esse será um interesse que pode ser satisfeito de forma pontual, por curtos períodos de tempo, e nunca uma necessidade superior à de estar na presença de um adulto de referência. Se observarmos um grupo de bebés poderemos facilmente observar como são ocasionais e efémeras as interações entre pares, e como a brincadeira que se desenvolve tende a ser solitária ou paralela (várias crianças a brincar em proximidade mas sem envolvimento entre elas). Só a partir dos três anos a grande maioria das crianças começa a conseguir desenvolver brincadeiras associativas (várias crianças a brincar em grupo, mas sem estrutura) e cooperativas (várias crianças a brincar em grupo com uma estrutura por elas organizada) com os pares. É nessa idade que surge uma maior necessidade de passar mais tempo com os pares, de estabelecer amizades concretas e duradouras, ainda que a necessidade de estar próximo de um adulto de referência permaneça por mais alguns anos. Esta necessidade é geralmente sinalizada de forma evidente por cada indivíduo, pedindo para estar com outras crianças, pelo que não haverá razão para antecipar a relação com pares antes desta manifestação.


“Incapaz de funcionar por si mesma, a criança precisa do apego a um adulto. Uma ligação física dentro do útero é necessária até estarmos suficientemente prontos para nascer. Da mesma forma, as nossas crianças precisam de estar emocionalmente ligadas a nós até serem capazes de se levantar e andar pelos seus próprios pés, pensar por elas mesmas e definir a sua própria direcção.” - Dr. Gordon Neufeld e Gabor Maté, 2019


Outro fator que deveremos considerar para questionar a premissa de que os bebés precisam da creche para socializar é pensar no tipo de socialização que ocorre num local onde temos maioritariamente muitos bebés da mesma idade ou de idade próxima e poucos adultos de referência, num espaço que se resume à instituição. Será que este ambiente mimetiza a socialização que a criança vai encontrar no mundo lá fora? Será este tipo de interação para o qual as crias humanas estão preparadas e adaptadas? Se pensarmos na nossa história evolutiva em tribo, facilmente poderemos entender que um bebé estaria rodeado de vários adultos com maior ou menor proximidade de parentesco, e várias crianças das mais variadas idades. A creche está longe de mimetizar este ambiente, tratando-se de uma socialização que é mais forçada e artificial do que natural. Alguns modelos educativos já promovem o contacto e a interação de crianças de várias idades mas esta “mistura” é muitas vezes recebida pelos pais com desconfiança e receio.


Gordon Neufeld afirma “Há uma confusão entre o conceito de socialização e ser mais social. As crianças tornam-se mais sociais nas instituições de cuidados de dia? Sim, elas tornam-se, mas pelos motivos errados. As crianças tendem a perder a sua vergonha e sabemos que a vergonha é algo essencial para proteger os vínculos existentes. Assim, quando as crianças perdem a sua vergonha natural com os pares elas tornam-se mais envergonhadas em torno dos adultos e isso não é bom. Elas tendem também a criar vínculos com os pares em vez de criarem vínculo com um adulto. Muitas vezes interpretamos isto como desenvolvimento social mas na realidade isto tem um custo elevado porque quando as crianças orbitam em torno dos seus pares elas deixam de orbitar em torno dos adultos responsáveis por elas como deveriam, e isso é essencial para um desenvolvimento saudável. Muitas vezes as crianças perdem a sua ansiedade de separação e nós pensamos que isso é muito bom mas pode acontecer que a criança perca a ansiedade de separação porque está agora mais vinculada aos seus pares do que aos seus adultos de referência e isso não é um bom sinal. Outro fator a considerar é que, quando a criança está numa posição de stress, que pode ser despoletado pela separação da sua figura de referência. Sabe-se que quando a criança está sem as suas figuras de referência os níveis de cortisol sobem, o cérebro equipa-nos para um ambiente de reparação. Nesse ambiente de reparação as crianças falam menos dos seus sentimentos e choram menos. Nós pensamos muitas vezes que isso acontece porque as crianças estão a tornar-se mais resilientes mas estes são na verdade falsos indicadores de socialização. (...)“.


Outro fator que leva muitas vezes os pais a acreditarem que os seus bebés ficariam melhor na creche é acreditarem que os seus bebés precisam de aprender coisas, fazer atividades e receber estímulos diferenciados e que a creche será muito mais competente a oferecê-los do que eles próprios. Obviamente todos os bebés beneficiam de alguns estímulos mas esses são facilmente oferecidos por um cuidador minimamente dedicado que cuide da criança com respeito e amor incondicional. Não há atividade e estímulo em contexto de creche que se sobreponha na sua importância ao valor de um bebé se sentir seguro e respeitado próximo de uma figura de referência que atenda prontamente às suas necessidades. Os bebés, de forma geral e falando de crianças saudáveis, precisam de muito pouco para se desenvolverem harmoniosamente. Os bebés beneficiam muito mais de um ambiente caseiro preparado para a sua exploração autónoma, com materiais simples, passivos e naturais, do que de um ambiente onde é o adulto que decide o que o bebé tem de fazer e como tem de fazer, que é o que acontece muitas vezes nas atividades dirigidas por adultos que não fazem muito mais pela criança do que fazer o deleite dos pais. Claro que falamos aqui de forma generalista com conhecimento do que se passa em muitas das instituições. Os profissionais precisam de mostrar trabalho pois os pais esperam-no. A forma mais eficaz de o fazer é oferecer atividades aos bebés que tenham resultados palpáveis e visíveis e que possam ser mostrados aos pais. Acontece que um bebé na sua exploração natural não faz propriamente obras de arte nem tão pouco consegue responder sempre às expectativas que o adulto tem para a atividade. Então muitas vezes o que acontece são atividades altamente direcionadas pelos adultos onde os bebés participam de forma condicionada e não espontânea. Esse tipo de atividades não são uma necessidade dos bebés e podem mesmo condicionar o seu desenvolvimento psicomotor, cognitivo e intelectual.


A creche não é o lugar para a intelectualização precoce, mas sim um lugar para os cuidados. Emmi pikler, pediatra húngara que fundou a abordagem pedagógia Pikler, comprovou já no início do século passado, o valor dos cuidados em contextos institucionais tão específicos como o orfanato, e mais tarde em creche. A sua filha e seguidora da abordagem, Anna Tardos, afirma: “A forma como é tratada contém, para a criança, muitas informações. Os movimentos ternos e delicados expressam atenção e interesse, enquanto os movimentos rápidos e repentinos são sinais de desatenção, indiferença ou impaciência.”

Se virmos os cuidados à primeirissima infância como o centro da actividade em instituições, o valor da creche passa automaticamente para uma relação saudável com as crianças e as famílias. E esta é a estrutura basilar para a saúde de toda a população.




Cedo demais


Hoje em dia sabe-se que os primeiros 1.000 dias, desde a concepção até aos 2 anos de idade, são uma janela crítica de crescimento e desenvolvimento. E consequentemente, a exposição a fatores dietéticos, ambientais, hormonais e outros stresses durante este período está associada a um risco aumentado de resultados adversos à saúde física e mental do bebé. Chegou-se a esta conclusão através de investigações feitas com cultura de células, e de modelos animais e humanos que identificaram este período como um período de rápida mudança fisiológica e plasticidade, com potencial significativo para o desenvolvimento geral a longo prazo. Como tal, percebeu-se que as intervenções durante os primeiros 1.000 dias serão de grande impacto no desenvolvimento humano a longo prazo.


Este facto é suportado pelo conhecimento em psicologia do desenvolvimento e dos estudos de saúde pública que promovem o “apego”, definido como “conexão psicológica duradoura entre o bebé e o cuidador” (Bowlby, 1969). O apego “seguro” define-se, como dissemos, por bebés que desenvolvem um sentido de confiança no mundo através da “sensibilidade” dos pais (e especialmente das mães), através da receptividade dos cuidadores para entender as expressões e necessidades dos bebés. Mas esta conexão, este apego pode ser feito por qualquer cuidador que ofereça o mesmo cuidado e proximidade física e emocional proporcionada pela amamentação.

Podemos assim eliminar alguns conceitos erróneos sobre como se processa o apego e o que contribui um apego seguro e consequentemente um bom desenvolvimento bebé. Como vêm não se trata apenas de contacto físico, tem muito mais a ver com responsividade e ligação emocional.


Esta valorização dos primeiros 1000 dias está na base dos serviços de saúde materno-infantil em vários países como do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA; da Organização Mundial da Saúde e da UNICEF, e servem de guia ao aconselhamento geral dado aos pais sobre alimentação, sono e interação física para promover apego positivo e resultados de saúde cognitiva, física e social, tal como diminuir a utilização de cuidados de saúde mais tarde na vida.


No entanto, quando se trata de políticas para a primeira infância o que vemos é que em vez de se ter um foco na promoção do apego e do bem-estar nas famílias, temos um foco precoce muito baseado na promoção do conhecimento e habilidades. Em vez de estarem focadas no apoio aos valores sociais e dos relacionamentos adulto-criança, focam-se muito nos valores dos relacionamentos precoces com vários outros adultos e pares (a dita socialização das crianças) que em si ocorre no risco de minar as capacidades e potencialidades das crianças pequenas como seres sociais, individualizados, e aprendizes dinâmicos. Pois na realidade a exposição precoce a relações sociais várias, mas pouco seguras ou ambivalentes, rouba o tempo e espaço de que as crianças precisam para se desenvolverem como indivíduos confiantes e felizes, em contato consigo mesmos e com o mundo ao seu redor.

Sabemos que os níveis de bem-estar da população estão fortemente correlacionados com os níveis de desigualdade e sabemos que as crianças mais desfavorecidas beneficiam mais ao passar mais tempo em ambientes sociais ricos e baseados em brincadeiras. E que para algumas crianças a solução mais rápida da sua situação desfavorável (não a ideal, no entanto) será colocá-la ou encontrar opções de cuidados externos à família. Mas na realidade ao querer responder a uma carência passámos a criar outra. Quando as soluções disponíveis não têm a qualidade anímica que deviam.

“Os direitos e interesses das crianças pequenas parecem ter sido subjugados ao interesse percebido da economia e à redução do déficit do governo. A ausência de uma consideração dos direitos das crianças numa oferta de qualidade na primeira infância e de uma primeira infância como uma fase legítima da vida, mais do que uma preparação para resultados educacionais posteriores, levanta sérias preocupações sobre a direção futura da formulação de políticas para a primeira infância.”


- Eva Lloyd, London Review of Education, Volume 13, setembro de 2015 - (1)


É importante enfatizar, no entanto, que as evidências científicas, que nos alertam para os impactos negativos da privação nos circuitos do cérebro, não significam que é necessariamente o enriquecimento excessivo que produz melhorias mensuráveis na arquitetura do cérebro.

O que que dizer é que embora uma gama variada de experiências claramente estimula a aprendizagem nos primeiros anos, as declarações promocionais sobre os impactos superiores na construção do cérebro de brinquedos “educacionais”, vídeos e músicas específicas, equipamentos que aceleram determinadas etapas, etc., para bebés e crianças pequenas, ou o slogan de que o quanto mais cedo é melhor, não têm base nenhuma científica.

A grande verdade é que usar instrução didática em áreas de habilidades que são inadequadas para a etapa do desenvolvimento das crianças (ou seja, os circuitos neurais subjacentes necessários para dominar a habilidade específica ainda não se desenvolveram) este é um exercício de futilidade, ou seja inútil, e em alguns casos poderá ser mesmo prejudicial. A tentativa de ensinar crianças de três anos a escrever é um exemplo desses esforços equivocados. Ou a de colocar a criança em pé antes desta ter o desenvolvimento esquelético/muscular apropriado. Porque a questão não é se a criança é “inteligente o suficiente” ou está “motivada” para aprender, andar, etc., mas se os circuitos cerebrais e a estrutura esquelética necessários estão suficientemente “conectados” para suportar os domínios específicos necessários para essa aprendizagem, e como em tudo na natureza sabemos que não devemos acelerar a biologia, tudo o que é acelerado artificialmente, geralmente, nasce mais fraco e menos nutrido.


E o que assistimos hoje em dia, muitos educadores e cuidadores de creche e jardim de infância, estão extremamente desiludidos e frustrados - alguns a ponto de estarem prontos para pedir demissão - pela crescente pressão sobre eles para ensinar habilidades intelectualizadas a crianças pequenas e/ou estimular regularmente determinadas habilidades que deveriam seguir o ritmo biológico individual da criança e não serem apressadas (que é na grande maioria a tradução de estimulação hoje em dia). Eles estão a assistir em primeira mão à infelicidade gerada, a desmotivação precoce, e ao desenvolvimento do sentimento de incapacidade pelas crianças, devido às suas habilidades estarem dependentes permanentemente da intervenção do adulto, o que leva a baixa auto-estima, motivação, atenção, etc. Tal como a um aumento da insatisfação permanente pelo facto das crianças terem um ritmo artificialmente acelerado que lhes dá uma incapacidade de estarem sozinhas consigo mesmas, e leva à necessidade de pedirem entretenimento externo permanente, o que futuramente se traduz numa incapacidade de esperar e de foco de atenção.


No entanto temos vários estudos (2) que comprovam que a precocidade da aquisição de certos resultados intelectualizados aumenta as pontuações imediatas das crianças nos testes específicos aos quais o treino se destinou (nenhuma surpresa aqui, cremos), mas esses ganhos iniciais desaparecem dentro de 1 a 3 anos e, pelo menos em alguns estudos, podem mesmo eventualmente ser revertidos. Talvez mais trágico do que a falta de vantagem académica de longo prazo da instrução intelectualizada inicial seja a evidência de que tal instrução pode produzir danos a longo prazo, especialmente nos domínios do desenvolvimento social e emocional.



Quais os benefícios da aprendizagem baseada no brincar livre?

  • Imaginação (por inspirar maior envolvimento, aprendizagem independente, criatividade, aprendizagem prática, enriquecimento do vocabulário e perspectivas expandidas)

  • Habilidades de desenvolvimento de linguagem e vocabulário (aprendidas por meio de maior auto-consciência, habilidades de comunicação, experiência compartilhada, envolvimento social e até oportunidades bilíngues)

  • Habilidades sociais (etiqueta, resolução independente de problemas, desenvolvimento de empatia, menos exposição a aspectos negativos da tecnologia, inteligência emocional, habilidades de resolução de conflitos)

  • Desenvolvimento Emocional (mecanismos de auto-regulação, os benefícios da interpretação, habilidades emocionais, expressão e escape, capacitação pessoal, preparação emocional e flexibilidade e equilíbrio)

  • Matemática e compreensão espacial (consciência espacial, vocabulário básico para matemática, aplicações no mundo real, a percepção de que matemática é divertida, a educação adequada ao desenvolvimento e a conceitos básicos)





OUTROS:


O valor económico da creche


Se olharmos para a creche do ponto de vista da economia, iremos centrar-nos no impacto na produtividade das famílias. Mas não estaremos a negligenciar valores fundamentais como a saúde física e mental? O que dizer da preservação da maturação do sistema imunitário e os custos que poderá ter para o estado a exposição precoce dos bebés a focos de infeção a curto, médio e longo prazo, com longas horas de permanência em salas fechadas, e o que dizer do impacto na saúde mental, com perturbações que se possam iniciar na infância por acompanhamento deficitário?


Os bebés não precisam de conviver com os pares o dia inteiro. A sua natureza de fusão com a mãe, por um lado, é egocêntrica, por outro, não os prepara para o contacto social em grupo na base diária e em horário completo. Os bebés não precisam de ir à creche para socializar, nem para aprenderem como funciona a vida.


Os bebés vão à creche porque os pais querem e/ou precisam de continuar a trabalhar em empregos incompatíveis com o acompanhamento dos filhos. E porque a tradicional rede de apoio está desmaterializada e foi substituída pelas instituições que geram riqueza.


Porque é que não temos uma licença de maternidade de pelo menos 1 ano? Porque o estado precisa de pais produtivos. Uma mãe cuida de um bebé, uma educadora cuida de 4. Isto leva-nos a concluir que o bebé tem um papel fundamental na economia e que é preciso falar honestamente sobre isso.


Em Fevereiro de 2021, foram assinados contratos para investimento de 12 milhões de euros em 25 creches espalhadas pelo país, conquistando 1.214 vagas. Entendemos que é mais barato, a curto prazo, criar vagas em todas as creches, do que alongar licenças de parentalidade. Mas e a longo prazo?


Não é para garantir melhores cuidados que os bebés ficam na creche, é na maioria das vezes para garantir o crescimento do PIB.


A Leila Oliveira, num artigo interessantíssimo para a Revista Estimuladamente (Brasil) afirmou: “Quando olhamos o contorno que uma pandemia trouxe […] podemos perceber que estávamos inocentemente desconsiderando os bebés como protagonistas em relações também de cunho económico. […] Criamos um sistema de cuidados que sustenta a manutenção da produção de dinheiro. […] A presença dos bebés gera capital, no entanto, chamamos o investimento em bebés de gasto.” Isto deixou-me a pensar muito tempo. Muitas vezes dizemos que a creche não é uma necessidade dos bebés, que é uma necessidade dos pais, mas seria mais justo dizer que é uma necessidade do estado.


Os países ricos da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Económico, no qual Portugal se inclui, gastam em média 0,7% do Produto Interno Bruto (PIB) em crianças, principalmente por meio de creches fortemente subsidiadas. A Dinamarca, por exemplo, gasta cerca de 20.000€ anualmente por criança com os cuidados (para crianças de 2 anos ou menos)

Seria interessante saber esses dados relativamente a Portugal, mas eles não estão publicados. Sabemos que o Estado gasta 7.850M em educação (execução orçamental. Fonte: Pordata) mas não há dados relativos às idades pré-escolares. Este valor é sensivelmente o mesmo desde 2011, e mais baixo do que em 2009, o que nos preocupa, tendo em conta que há a intenção de tornar o ensino pré-escolar obrigatório sem que se tenham atingido objetivos basilares na preparação económica dessa meta.


Sabemos como a qualidade do ambiente de cuidados infantis é importante para o desenvolvimento das crianças. E qualquer um de nós que já tenha feito uma peregrinação a espaços de cuidados infantis primários, muito possivelmente deparou-se com algumas situações menos positivas. Não questionamos tanto em relação às instalações, embora estas sejam importantes, mas não precisam de ser sofisticadas, mas referimo-nos mais sobre o funcionamento e os funcionários. Sabemos que alguns destes têm pouca ou mesmo nenhuma formação e são mal remunerados. (Ordenado mínimo na generalidade para o pessoal assistente). E os educadores também sempre com ordenados inferiores a qualquer outra classe educativa, e muitas vezes sem acesso à contagem de tempo de serviço, havendo quem ganhe tanto ou menos como profissionais do ramo das limpezas ou comércio/supermercado. Não estamos a sugerir que estes empregos não merecem remuneração decentes, estamos apenas a questionar se cuidar da próxima geração deve ser classificado como menos valioso do que estes papéis sociais. Porque são estes salários precários, as longas horas de trabalho, o ratio adulto-criança, excesso de burocracia e a falta de reconhecimento, que levam a que o sector esteja com problemas de pessoal e esteja a lutar para recrutar profissionais qualificados. Numa altura em que temos a pesquisa da UNESCO (2018) sobre a qualidade do cuidado infantil que mostra uma ligação direta entre as condições dos trabalhadores, a sua remuneração e a qualidade do serviço. O que é completamente óbvio quando pensamos sobre isto; quanto mais qualificados e melhor remunerados forem os profissionais de puericultura, melhor será a experiência educacional e de cuidado das crianças.


E, como dissemos, as experiências iniciais estimulantes devem ser seguidas por experiências mais sofisticadas e diversificadas mais tarde na vida, quando os circuitos de alto nível estão a amadurecer, para que todo o potencial seja alcançado. Mas se, durante estes períodos sensíveis, a vivência for de experiências stressantes, estas irão alterar a função e a arquitetura de certos circuitos neurais específicos, visto que esses circuitos têm de adaptar as suas propriedades funcionais às adversidades que eram até então desconhecidas. As implicações futuras destes desajustes, em intervenções posteriores no desenvolvimento são claras – a tarefa será sempre mais difícil, mais dispendiosa em termos de esforço individual e social, e potencialmente menos extensa e durável. Não precisamos de pesquisas sofisticadas para provar que uma criança pequena agressiva é algo que está dentro dos parâmetros da idade e que através da aprendizagem por co-regulação por um adulto carinhoso levará a uma criança mais velha que sabe regular as suas emoções, no entanto “reabilitar” adolescentes adultos violentos ou explosivos, será muito mais difícil e dispendioso, o que seria o resultado se partíssemos do princípio que esta regulação emocional é uma aquisição que a criança pequena pode fazer sozinha, quando na realidade esta não está biologicamente capacitada para o fazer. Mas que continua a ser informação que muitos profissionais não têm, por falta de actualização ou formação.


No entanto nas Orientações Pedagógicas para Creche, de 2016 (3) lemos: “Existindo uma larga variação nos ritmos e tempos de aprendizagem e desenvolvimento, sendo cada criança única e irrepetível, o currículo deverá atender não só às diversidades culturais, mas também às individuais. (...) (deverá ter em conta) A natureza global da aprendizagem e desenvolvimento infantil, o valor do brincar, de aprendizagens ativas, de experiências significativas e de desafios, a importância do desenvolvimento da expressão e comunicação, o papel crucial das outras crianças e adultos no desenvolvimento de cada criança. Estas aprendem e desenvolvem-se bem na interação com pessoas que cuidam delas, que as amam, que as respeitam e lhes conferem segurança; pessoas atentas e sensíveis às suas particularidades; pessoas que criam para elas espaços equilibrados de estimulação, desafio, autonomia e responsabilidade; pessoas de referência na sua vida, como são os familiares próximos, bem como os educadores/as e outros adultos que com elas partilham espaços, rotinas e atividades. Cada educador/a procura assegurar o melhor para cada criança, reconhecendo a importância do estabelecimento de relações positivas próximas com a família, da comunicação e articulação com outros agentes da comunidade e com os colegas de profissão, e desenvolvendo trabalho colaborativo com vista a assegurar continuidade educativa, quer na entrada da criança para a creche, quer na transição para a educação pré-escolar.”



Mas o que temos ainda é um número reduzido de adultos 1 para 4/5 na sua generalidade em Portugal (quando todos os estudos apontam a um máximo de 1 para três, nestas idades), o que significa que as crianças pequenas se apeguem muitas vezes mais aos seus pares, e não aos adultos, pois os pares são mais rapidamente responsivos independente da qualidade da sua resposta. O apego fala-nos no instinto que faz com que os adultos cuidem das crianças e as crianças recebam esse cuidado. O apego inicial bem-sucedido é necessário para o desenvolvimento emocional adulto. Pois como seres humanos, somos criaturas altamente sociáveis. Identificamos alguns relacionamentos como sendo de maior prioridade e somos muito particulares sobre quem assume essa posição. É por meio dessas conexões que desenvolvemos um sentido de identidade. Mas o mais importante - as nossas figuras de apego de alta prioridade (também conhecidas como as pessoas que mais vemos e realmente amamos) devem ser duradouras. Pessoas que podem desaparecer das nossas vidas, ou com quem não temos fortes apegos, não são alguém com quem as crianças pequenas devam “crescer”. Essa é uma das razões pelas quais os funcionários das creches dificilmente podem imitar o poderoso apego dos pais: um emprego é um emprego, e os funcionários mudam com alguma regularidade, existem mudanças estruturais, mudanças de emprego ou de cidade, etc. E em relação aos pares, quando as crianças pequenas passam muito tempo com os seus colegas, elas imitam as características daqueles que veem ao seu redor e não têm um agente regulador maduro.


Apoiar a diversidade – criá-la, respeitá-la e permitir que ela floresça – é uma das palavras-chave mais populares de hoje, algo ao qual prestamos homenagem. No entanto, a colocação precoce de crianças com personalidades ainda não desenvolvidas em creches em grupo por longas horas, quando elas ainda não são capazes de “segurar” as suas próprias personalidades especiais e únicas, cria mesmice, não individualidade. Esta é, em muitos casos, uma das razões pelas quais os pais podem e deveriam poder optar por adiar a entrada das crianças pequenas no sistema escolar.


“Aboslutamente em falta nas relações de pares estão o amor incondicional e a aceitação, o desejo de nutrir, a capacidade para se exceder pelo bem do outro, a vontade de se sacrificar pelo crescimento e desenvolvimento do outro.” - Dr. Gordon Neufel e Gabor Maté, 2019


O problema com as crianças socializarem na escola é que as crianças são inconstantes nas suas amizades. “Os “amigos” da criança pequena não são realmente um “amigo” em nenhum sentido significativo da palavra. Ele não é uma pessoas madura que pode lidar com a dor ou a diferença de opinião dos outros. Os colegas querem que todos sejam iguais a eles. O resultado é menos expressão individual e menos crescimento pessoal. Ou seja, a dita socialização da criança pode trazer mais desvantagens que vantagens ao seu desenvolvimento porque, na sua grande maioria, estão-se a criar relações pouco seguras e de nivelamento que não contribuem para um crescimento emocional e cognitivo saudável.

Os pais cujos filhos precisam ficar sob cuidados externos seria sensato confirmar que a “aprendizagem precoce” nestes espaços se limita exclusivamente a brincar num ambiente de apego adulto, e onde é dada à criança tempo e espaço para se desenvolver ao seu ritmo. Porque, infelizmente devido à forma como esta intervenção precoce foi interpretada, muitas vezes, são os próprios pais que pressionam os cuidadores a fornecerem “conteúdo educacional” para idades cada vez precoces, pois criamos uma sociedade onde temos pais cada vez mais ansiosos e com medo de que os seus filhos estejam atrasados. Quando o que os pais deviam evitar era qualquer tipo de sistema de cuidados de tamanho único onde todas as crianças atingem os mesmos objetivos ao mesmo tempo.

Pois o tipo de sistema que os governos na sua generalidade criaram – para “ajudar” cada família, são ambientes que são menos pessoais e muito distantes do relacionamento que a criança teria se estivesse com os pais. Com muitas crianças para poucos adultos e horários muito extensos, tudo isto prejudicial a um bom desenvolvimento da criança, como já vimos.

Na verdade, porque a ama, os familiares, a vizinha, o que por muito tempo, foi uma forma de atendimento de alta qualidade para crianças, hoje em dia está rotulada como “não regulamentado”, por aqueles que se esforçam para criar creches escolares com funcionários reconhecidos mas na realidade com poucas condições de prestação de um atendimento de cuidado. Diante das críticas e muito através da imprensa (sabemos que em muitos casos com muita razão de causa infelizmente), o “não regulamentado” passou a ser conhecido como “perigoso”. Mas então ressalvamos que também todos os pais são “não regulamentados”, e isso por si só não é motivo de preocupação. O que quer dizer que os pais precisam e devem inspecionar todos os cuidados de cima abaixo – mas precisam de o fazer quer eles sejam regulamentados pelo governo ou não!


Como dissemos, as pesquisas mostram que uma equipa com conhecimentos e habilidades estão entre os determinantes mais importantes do impacto dos cuidados para a primeira infância. Mas o que acontece é que os programas-modelo criados e baseados noutros que provaram ser eficazes são “levados à escala”, mas com menos pessoal, pessoal menos bem remunerado e com menos experiência, daí não ser surpreendente que os ditos benefícios ​​muitas vezes não sejam alcançados.


Se o conhecimento e as habilidades de quem atende às necessidades das crianças e famílias for mal qualificado e remunerado, comprometemos a eficácia dos programas de educação pré-escolar e diminuem os retornos finais que podem ser alcançados com investimentos no apoio à parentalidade e a outras opções de cuidados mais personalizadas que já percebemos ser o ideal nestas idades.


Urge pois calcular o valor real e global da creche.


Lei do trabalho e alternativas à creche


A escassa rede de apoio típica da sociedade em que vivemos, a forma como os progenitores preparam a sua vida e condicionam as suas receitas antes de terem filhos e a curta licença de maternidade e paternidade em Portugal não deixam muitas vezes aos pais grande margem para decidirem colocar ou não os filhos na creche. É aqui que se inicia a ideia de que a creche é um mal necessário. Pasma-nos como se repete este cliché com tanta leveza, assumindo a creche como um mal. Mas o principal perigo desta afirmação é assumir esse mal como inevitável. Vistas assim as coisas, parece que nada pode melhorar e que os pais não têm nada a fazer para essa melhoria.

Acreditamos que a creche tem de ser um lugar aberto às famílias e que as vivências devem ser integradas e partilhadas com os pais na medida em que permita aos bebés realmente entenderem a creche como a sua segunda casa.

A Lei Portuguesa estabelece alguns direitos para os pais trabalhadores que permitem seguir por alternativas à creche e/ou à creche a tempo inteiro, mas infelizmente pouco divulgadas e muitas vezes difíceis de negociar com as entidades patronais. Dentre eles queremos destacar alguns, para que os pais possam munir-se de conhecimento legal nesta matéria:

Direito a licença parental complementar, para assistência a filho/a ou adotado/a com idade não superior a seis anos, nas seguintes modalidades:

  • Licença parental alargada, por três meses, paga a 25 % da remuneração de referência*, desde que gozada imediatamente após o período de concessão do subsídio parental inicial ou subsídio parental alargado do/a outro/a progenitor/a;

  • Trabalho a tempo parcial durante 12 meses, com um período normal de trabalho igual a metade do tempo completo;

  • Períodos intercalados de licença parental alargada e de trabalho a tempo parcial em que a duração total da ausência e da redução do tempo de trabalho seja igual aos períodos normais de trabalho de três meses;

  • Ausências interpoladas ao trabalho com duração igual aos períodos normais de trabalho de três meses, desde que previstas em instrumento de regulamentação coletiva de trabalho. O pai e a mãe podem gozar qualquer das modalidades referidas, de modo consecutivo ou até três períodos interpolados, não sendo permitida a cumulação por um/a dos/as progenitores/as do direito do/a outro/a.”

Direito a faltar, até quatro horas, uma vez por trimestre, para se deslocar ao estabelecimento de ensino, tendo em vista inteirar-se da situação educativa de filho/a menor.

Direito a licença para assistência a filho/a, depois de esgotado o direito à licença parental complementar, de modo consecutivo ou interpolado, até ao limite de dois anos. No caso de terceiro/a filho/a ou mais, a licença prevista no número anterior tem o limite de três anos.

Direito a trabalhar a tempo parcial com filho/a menor de 12 anos ou, independentemente da idade, filho/a com deficiência ou doença crónica, não podendo ser penalizado/a em matéria de avaliação e de progressão na carreira. Se a entidade empregadora manifestar a intenção de recusa ao pedido do/a trabalhador/a, deve solicitar obrigatoriamente parecer a emitir, em 30 dias, pela Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego.

Direito a trabalhar com horário flexível com filho/a menor de 12 anos ou, independentemente da idade, filho/a com deficiência ou doença crónica, não podendo ser penalizado/a em matéria de avaliação e de progressão na carreira. Se a entidade empregadora manifestar a intenção de recusa ao pedido do/a trabalhador/a, deve solicitar obrigatoriamente parecer a emitir, em 30 dias, pela Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego.

Direito a trabalhar em regime de teletrabalho, com filho/a com idade até 3 anos, quando o teletrabalho seja compatível com a atividade desempenhada e a entidade empregadora disponha de recursos e meios para o efeito.

Fonte: https://cite.gov.pt/direitos-dos-pais-e-das-maes-trabalhadores/as

Talvez estes direitos, se normalizados, permitam diluir falsos argumentos sobre a necessidade de institucionalização precoce das nossas crianças.



A pré-escola* deve ser obrigatória?


Numa visão a curto prazo para as crianças, é necessário "prepará-los" para a escola. Um pré-escolar que se baseie em conquistas académicas cada vez mais precoces (tendência com cada vez mais adeptos), satisfaz perfeitamente esta necessidade. Numa visão a longo prazo, onde se esperam adultos saudáveis, criativos, independentes, de pensamento crítico, e bem ajustados que contribuirão para a sociedade, o pré-escolar cada vez mais académico de hoje faz pouco sentido.

Defendemos um pré-escolar centrado no BRINCAR, respeitador do desenvolvimento natural da criança, e que sirva de apoio às famílias, não em sua substituição.

O pré-escolar, como indica o nome, é o tempo pré-escola, não é escolarização, no entanto o que se tem observado, é que cada vez mais este segue os padrões da escola, na maioria do ensino público, mas não só.


Recentemente o governo lançou a proposta de lei para aumentar a obrigatoriedade do ensino a iniciar-se aos 3 anos. Não fará mais sentido um pré-escolar de acesso universal e gratuito, respeitador da criança e da infância, meta que ainda não foi atingida pelo governo? Não encontramos razão alguma para este ser obrigatório, muito menos que esta medida possa ajudar a combater a pobreza e as dificuldades de educação típicas de famílias carenciadas.

A nosso ver, antes de perdermos de vez algo tão precioso e profundo quanto as nossas pré-escolas, onde o mais importante é o brincar livre (aquele que é exclusivamente iniciado e guiado pela criança) e o respeito pela individualidade e desenvolvimento natural da criança, e quando temos especialistas em desenvolvimento infantil que estão a tentar fazer o possível e impossível para fazer soar o alarme, como o psicomotricista Carlos Neto, aproveitemos o clima actual para pensar o que queremos realmente para o nosso pré-escolar, e qual o seu papel.

Os melhores e mais brilhantes desta área há muitos anos que nos alertam para que um pré-escolar cada vez mais académico resultará em crianças menos criativas, menos curiosas e menos capazes de raciocínio crítico. Isso não só terá consequências terríveis para elas como futuros trabalhadores, pais e cidadãos, mas também terá consequências graves para a nossa democracia.


Defender a nossa educação infantil, a nosso ver, é defender os cuidados de qualidade, o brincar livre, a exploração, a aprendizagem prática — pelo fazer por si, a interação social, atividades sensoriais e experiências no mundo real, de preferência ao ar livre, apostando num desenvolvimento individual, que respeita o ritmo e tempo da criança e suas necessidades físicas, psíquicas e emocionais. E felizmente, temos vários especialistas que criticam as muitas práticas atuais que não são adequadas ao desenvolvimento e causam stress, confusão e frustração desnecessários às crianças. Desde o desrespeito pela sua biologia, muitas vezes privando as crianças no jardim de infância das tão necessárias sestas, ou obrigando bebés e crianças a desfraldes prematuros, até "aulas" dirigidas pelo educador, longos tempos de círculo/roda/ ou assembleia, demasiadas tarefas com lápis e papel (pré-escrita ou cálculo), fichas de avaliação, memorização mecânica, e uso cada vez mais precoce da tecnologia.


As pré-escolas baseadas no brincar livre promovem o tipo mais profundo de aprendizagem, incentivam as crianças a tornarem-se aprendizes autónomos que exploram, desenvolvem a curiosidade e resolvem seus próprios problemas. Ou seja, estimula o aprender a aprender. E apoia um desenvolvimento autónomo e individual e respeitador dos seus ritmos internos.

Em contrapartida, o ensino nas pré-escolas mais académicas geralmente envolve o tipo de aprendizagem mais superficial que inibe a iniciativa e a independência, desrespeita os ritmos individuais de cada criança e portanto o seu desenvolvimento harmonioso.

Temos décadas de pesquisas em psicologia do desenvolvimento, neurociência e em pedagogia que mostram que brincar livre é a maneira mais eficaz das crianças aprenderem, desenvolverem habilidades sociais e regularem as suas emoções.


E por outro lado temos estudos recentes que vieram a constatar que entre crianças e adolescentes, o brincar livre diminuiu drasticamente durante os últimos 50 a 60 anos, com um aumento correspondente de depressão, ansiedade e suicídio. Os pesquisadores relacionaram também a falta de brincadeira ao aumento do narcisismo e diminuição da empatia nas nossas crianças.


A ansiedade dos pais está em alta, e cada vez mais são os pais que se sentem pressionados para que os seus filhos estejam "academicamente preparados" quando deixarem o jardim de infância. Como resultado, as pré-escolas tornaram-se cada vez menos voltadas para o brincar, a criatividade e a socialização, e mais virada para as habilidades de pré-leitura e cálculo matemático estruturado e guiado pelo adulto, longos tempos de atividades sentados, e atividades como foco no educador. E o impacto nas crianças é devastador.


Faz falta um movimento, à semelhança de outros países, de "Defesa dos Primeiros Anos" que servisse para informar os pais das crianças pequenas e o público em geral sobre a importância de permitir que as crianças sejam crianças.


Embora a instrução formal precoce possa parecer mostrar bons resultados nos testes no período logo imediato, a longo prazo, os estudos de acompanhamento mostram que essas crianças não tiveram nenhuma vantagem. Pelo contrário, especialmente no caso de rapazes, a sujeição à instrução formal precoce aumenta a tendência de se distanciar dos objetivos da escola e de possível abandono escolar, seja este mental ou físico.


Esta preocupação em acelerar as aprendizagens resultou num currículo desajustado, o que significa que as atividades antes reservadas para alunos mais velhos agora são usadas com os mais novos. Embora alguns pais fiquem facilmente impressionados com a aquisição precoce de conceitos pelos filhos, muitas vezes eles estão na total ignorância do mal que isso possa causar. Os efeitos negativos de um currículo acelerado, no entanto, foram pesquisados e documentados por especialistas em educação infantil e incluem níveis aumentados de stress, maior incidência de comportamento agressivo e um fenómeno particularmente perturbador: o diagnóstico, cada vez mais precoce, de défices e outras patologias.


Um currículo acelerado pede que as crianças se comportem segundo padrões que não são razoáveis na sua tenra idade. Quando não conseguem corresponder, ficam frustrados, agem de forma desafiadora e recusam-se a participar — logo são rotulados de "desestabilizadores", "hiperativos", "opositores" ou "socialmente imaturos". Começam muitas vezes aqui os sobre diagnósticos da infância.


Quando se coloca a pergunta de o que é que há de errado com as crianças na pré-escola? A pergunta apropriada seria: o que há de errado com o nosso pré-escolar?


Andamos a fazer o oposto do que funciona? A Finlândia é conhecida em todo o mundo por seu excelente sistema educacional. Um estudo em 2012 que avaliou os sistemas educativos em 50 países, levando em consideração fatores como pontuações em testes padronizados, taxas de alfabetização e taxas de graduação universitária colocou a Finlândia em primeiro lugar. Lugar que tem mantido.

O que nos levaria a pensar que, portanto, seria visionário seguir o exemplo da Finlândia na educação infantil:

  • As crianças na Finlândia não recebem instrução académica formal até os 7 anos de idade.

  • As pré-escolas da Finlândia são voltadas para a criança, o brincar livre, a exploração e a aprendizagem prática, o respeito pela individualidade e muito contacto com a natureza.

  • Os educadores de pré-escola são valorizados na Finlândia, mas em Portugal, recebem baixos salários e possuem um baixo estatuto social. E os educadores do pré-escolar, no nosso país, estão cada vez mais sugestionados pela intensa pressão em preparar academicamente as crianças para o primeiro ciclo.

  • A alegria e o bem-estar físico e emocional são a base para o ensino das crianças pequenas na Finlândia. Os seus educadores têm objetivos amplos de longo prazo: promover alunos entusiasmados ao longo da vida que podem pensar por si mesmos, trabalhar bem uns com os outros, usar a sua imaginação e resolver problemas de formas criativas.

Se queremos o melhor para os nossos filhos e queremos que eles cresçam sãos, devemos dar-lhes mais tempo e oportunidade para brincar, livremente.


No entanto, os legisladores e entidades com poder decisivo continuam a empurrar na direção oposta — em direção a mais escolaridade, mais orientação dos adultos para as crianças e menos oportunidades para brincar livremente, e acreditam que esse será ainda mais o futuro do pré-escolar se este integrar o ensino obrigatório. Tornar-se-á cada vez mais ensino e menos Jardim de Infância, ou seja espaço para a criança germinar, crescer e florescer.


O que vai mudar quando neste momento a rede pública nem sequer consegue incluir as crianças de 3 anos? Quando temos cada vez menos pessoal docente e auxiliar, e cada vez mais docentes em idade de reforma? Podemos acreditar que esta oferta vai melhorar pela sua obrigatoriedade e que vamos finalmente ter escolas respeitadoras das verdadeiras necessidades da criança? Poderíamos, mas temos sérias dúvidas porque a direção tem tomado sempre o caminho inverso.


Pusemos o bom senso de lado e substituímo-lo pelo medo - medo de que os nossos filhos não sejam espertos o suficiente, medo de não terem sucesso na escola, medo de não conseguirem empregos bem remunerados. Deixamos essas preocupações dominarem-nos e dominá-las, impedindo-nos de fazer o que é melhor para as nossas crianças.


No seu artigo: O declínio das brincadeiras e a ascensão dos transtornos mentais infantis, o Dr. Peter Gray deixa bem claro que os nossos filhos e a sociedade estão a pagar um preço demasiado alto pelos currículos desajustados. Ele relaciona as taxas crescentes de depressão, ansiedade, narcisismo e suicídio entre as nossas crianças e adolescentes a um declínio no Brincar livre e da exploração.


Consulta:

Sobre o abandono escolar dos rapazes:

Adaptação escolar: vinculação ou resignação?


O período de adaptação escolar é o tempo que uma criança demora a estar confortável física e psicologicamente num novo ambiente, e/ou com pessoas desconhecidas, até que crie um vínculo seguro aos lugares e às pessoas.


Infelizmente não é do ponto de vista da vinculação que os premidos de adaptação são tradicionalmente vistos, mas como um período de habituação. Quantas vezes já ouvimos “Eles choram nos primeiros dias mas depois habituam-se e até já não querem sair de lá.”? Efectivamente, os primeiros tempos na creche deveriam ser de vinculação, e não de resignação. O custo emocional de um desamparo aprendido sai caro. E acreditamos que não apenas ao indivíduo que o sofre, mas também à futura economia portuguesa.


A introdução na creche com choro persistente e repetido é desamparo aprendido. Um mecanismo psíquico que permite ao ser humano sobreviver à constante falta de resposta às suas necessidades. Acontece nos horrendos treinos de sono. Na introdução à creche, é uma defesa que o bebé cria porque sente que ninguém o escuta, porque as pessoas à sua volta parecem achar que está tudo certo, e então ele acaba por desistir de chorar e demandar uma resposta à sua necessidade. A psicóloga infantil Patrícia Fernandes refere: “Se soubessem o número de jovens que aparecem anos mais tarde em consulta com problemas resultantes do desamparo aprendido, a adaptação escolar seria vista de outra forma”.


Em termos biológicos, os bebés estão preparados, por uma questão de sobrevivência, para terem medo do desconhecido. Uma pessoa nova é como um monstro, que os faz esconderem-se atrás das pernas da mãe. Até ganhar confiança nessa pessoa e deixar de a considerar uma ameaça, o bebé precisa da regulação do adulto, uma vez que o seu cérebro imaturo não lhe permite auto-regular-se. Por isso é tão importante que os períodos de adaptação sejam feitos com acompanhamento de uma figura de referência, durante o tempo necessário (nuns bebés dias noutros meses) para conquistar nova figura de referência dentro da creche. “Importa conhecer as características desse estado de alerta, as suas consequências e o que podemos fazer para que ele não se torne mais ou menos permanente”, diz a psicóloga clínica Laura Sanches.


Até este novo vínculo estar estabelecido, é provável que o bebé não se relacione com o meio ambiente com qualidade, não brinque, não coma e se recuse a fazer actividades propostas e a adormecer pacificamente. Porque até aí ele está em estado de alerta, a tratar sobretudo da sua necessidade principal: a de segurança afectiva.


Hoje é sabido que a qualidade dos vínculos precoces estabelece toda a base para a saúde mental na fase adulta. Autores como Bowlby ajudam-nos a entender a importância do apego seguro para a saudável relação consigo mesmo e com os outros.


A educadora e pedagoga Laura Estremera Bayod explica porque é que isto acontece: “Na nossa sociedade não se dá suficiente importância ao desenvolvimento emocional dos bebés, interpretando-o desde a nossa perspectiva de adulto e as nossas ferramentas e estratégias, quiçá por isso normalizámos que o período de adaptação escolar seja um tempo em que os bebés choram e se sentem mal na escola, acreditamos que isto é algo por que têm de passar “à força”, em vez de focar nas necessidades dos bebés e tentar acompanhá-los da forma mais respeitosa possível. O bebé que começa a escola, mesmo que lhe expliquemos verbalmente antes, lhe leiamos livros sobre o tema… realmente não entende porque está ali e vivencia-o como um abandono”.


Portanto se a creche é necessária, é urgente que deixe de ser um mal. Sobretudo no primeiro impacto. Porque sem vínculo não se aprende. O vínculo é a base de tudo. Se as pessoas tivessem noção de que a vinculação segura é a base da leitura e da escrita, perceberiam a importância da adaptação escolar.


É urgente que o choro deixe de ser subestimado e entendido como um mecanismo passageiro e de pouca importância, é urgente reverter a normalização do mal-estar nestes períodos de adaptação, admitir as consequências a curto, médio e longo prazo do desamparo destes dias, escutar os bebés e atender às suas necessidades. Afinal, para que serve ser educador se não houver um ponto de partida do conhecimento do desenvolvimento infantil actualizado, que inclua as mais recentes descobertas da neurociência, por um lado, e a mais ancestral biologia, pelo outro? Ambos nos dizem que os bebés precisam de contacto permanente com uma figura de referência capaz de lhe atender às necessidades e de o auto-regular até que ele seja capaz de o fazer por si mesmo.


A vinculação não se força. Não é possível vincular à força. Portanto deixar um bebé à porta da creche nos braços de um desconhecido e esperar que o bebé entenda que é alguém de confiança, quando muitas vezes nem os próprios adultos têm a certeza disso, é de uma extrema violência. Um bebé que pode adaptar-se à creche na presença de um cuidador com quem já estabeleceu vinculação segura estará por certo preparado para uma experiência escolar positiva, e que não se sente em perigo ou ameaçado.


Evitemos então esse período de resignação, como tão bem denomina Gervilla (2006) e crianças com um comportamento que expressa conformidade que pode levar a dificuldades nos processos fisiológicos, sobretudo a alimentação e o sono e nos processos sociais, com dificuldade nos contactos e ligação emocional. Vamos finalmente dar o devido valor à saúde mental.


Há países que já puseram em prática protocolos de adaptação escolar respeitadores dos bebés. Na Alemanha, por exemplo, os pais são chamados a estarem presentes e disponíveis nas primeiras semanas. Citamos agora o "Modelo Berliner":


“O primeiro dia começa normalmente às 10 da manhã e dura 1 hora com o pai e a criança juntos numa sala com a pessoa chave e algumas outras crianças da mesma faixa etária.

O pai senta-se num local designado durante a integração com a ideia de que a sua presença oferece tranquilidade e conforto (*pede-se que o pai mantenha o seu foco no seu próprio filho para que o seu filho saiba que você está lá exclusivamente para lhe oferecer conforto caso precise). Após os primeiros dias e com base na forma como a criança está a responder, os pais sairão da sala durante um breve período, embora sempre por perto. Esta separação aumentará gradualmente no decorrer das semanas seguintes e é sempre ajustada para corresponder ao ritmo da criança.

É aconselhável que o mesmo progenitor acompanhe a criança durante a fase de integração - esta continuidade oferece a maior tranquilidade ao seu filho. Embora dependa da criança, um dos pais deve planear 3-4 semanas para o processo de integração. Além disso, é fortemente aconselhado a não ir de férias nos primeiros 3 meses após a integração para realmente permitir ao seu filho instalar-se na escola; caso contrário, há o risco de ter de reintegrar o seu filho.”


Dito tudo isto, teremos de apaziguar a culpa dos pais. Na esmagadora maioria das creches não há qualquer preparação e disponibilidade para uma adaptação com a presença de uma figura de referência. O que fazer enquanto o cenário não mudar? Abrir um diálogo assertivo com os educadores, com as direcções pedagógicas, com os directores das instituições. Até porque a adaptação escolar também toca aos pais, e eles não podem ser responsabilizados por processos difíceis ou mal sucedidos quando estão apenas a garantir a vinculação segura dos seus filhos. Ouve-se muitas vezes dizer que os culpados do stress nos primeiros dias de creche são os pais, e sobretudo as mães, que têm mais dificuldade ainda que os bebés em separar-se. Isto é de uma profunda falta de empatia e respeito pelos pais.


A nossa proposta é que se criem condições para que a adaptação à creche seja um período muito específico das vivências institucionais, com a total abertura aos pais e rotinas propícias à sua integração até haver a transferência da figura de referência por parte de cada bebé. Até ele não mais se esconder atrás das pernas da mãe quando vê a educadora, até ele querer brincar, mostrar a escola, fazer amigos e recorrer às novas figuras de referência quando se sente mal, sabendo que ali tem também um porto seguro. Só assim teremos período de vinculação, e não de resignação.


Poderes e limitações dos pais nas instituições


A maioria das instituições para a primeira infância não estão preparadas para incluir os pais. Para além de um período de adaptação sem a sua presença, os contactos são parcos, muitas vezes maioritariamente virtuais, os relatos diários são apressados e vagos, as portas das salas estão fechadas à sua entrada, se não mesmo a porta da escola, que abre apenas em dias festivos completamente diferentes de um dia normal. A não integração dos pais nas rotinas das escolas implica um desconhecimento perigoso sobre o que se passa lá dentro, e pode permitir negligência e desresponsabilização das instituições.


É urgente incluir as famílias na prática da creche e jardim de infância e garantir que estes espaços estão ao serviço da criança, e por consequência da família, e por consequência do estado.


Por último deixamos esta pergunta: o que mudaria se passássemos a ver a creche assim? Que tipo de exigências os pais fariam sabendo que as suas crianças não precisam de ir à creche e ao jardim de infância e que estão a sustentar o futuro económico do país colocando os filhos nestas instituições? Não seria este um bom caminho para a melhoria das condições em que as nossas crianças crescem?


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