Há um momento silencioso e revelador na vida de uma criança que muitos de nós já presenciámos: ela segura um brinquedo, uma pedra especial do parque ou um pedaço de papel rabiscado e diz, com firmeza, “É meu!”. Se o objeto lhe for tirado, o sofrimento explode num pranto profundo, como se uma parte de si mesma tivesse sido arrancada.
Mas de onde vem essa dor? O brinquedo tem realmente esse valor ou é algo mais profundo que está em jogo? E, ampliando a questão: de onde vêm as crenças que moldam a forma como vemos as crianças e como as tratamos?
De onde vêm as nossas crenças sobre a infância?
As ideias que carregamos sobre o que é ser criança – e sobre como uma criança deve comportar-se, sentir ou aprender – não nascem connosco. São-nos passadas, subtilmente, pela cultura, pela educação e pelas nossas próprias experiências.
Se crescemos num ambiente onde ser obediente era sinónimo de ser uma “boa criança”, é provável que, sem nos apercebermos, esperemos o mesmo das crianças à nossa volta. Se fomos elogiados quando fomos rápidos, espertos e produtivos, talvez sintamos uma certa ansiedade quando uma criança demora demasiado tempo a apertar os sapatos ou a contar uma história cheia de desvios.
E se a forma como olhamos para as crianças não for apenas nossa, mas uma lente herdada, construída ao longo de gerações?
A infância, então, deixa de ser um espaço de descoberta e torna-se um campo de treino para a vida adulta. Mas o que perdemos quando vemos as crianças assim?
O impacto invisível das nossas crenças e gatilhos
O que nos incomoda no comportamento de uma criança diz tanto sobre ela quanto sobre nós.
Se uma birra em público nos desperta um desconforto imediato, pode ser porque, lá atrás, aprendemos que expressar emoções era “falta de controlo”. Se sentimos um nó na garganta quando uma criança diz “não” com firmeza, talvez seja porque crescemos a ouvir que “as crianças bem-educadas não respondem aos adultos”.
Estas reações automáticas são gatilhos emocionais. São respostas internas que o nosso cérebro ativa sempre que algo desafia uma crença que carregamos, muitas vezes sem nos darmos conta.
É por isso que, tantas vezes, reagimos a uma criança sem sequer pensar: "Não sejas teimoso!", "Pára com isso!", "Isso não é forma de te comportares!".
No fundo, não estamos a responder à criança real à nossa frente, mas sim à criança que nós fomos e ao que nos foi ensinado sobre como devíamos ser.
E esta herança cultural não vem apenas da nossa família. Vem da escola, dos avós, da televisão, dos livros, da sociedade inteira. Durante muito tempo, as crianças foram vistas como “adultos inacabados”, como páginas em branco à espera de serem preenchidas. Esse olhar não desaparece de um dia para o outro. Continua a influenciar a forma como falamos, corrigimos e educamos.
O adulto como espelho: o que herdamos e o que escolhemos transformar
Se prestarmos atenção, percebemos que as nossas reações automáticas às crianças dizem tanto sobre a nossa história quanto sobre elas. A forma como lidamos com o choro, a birra, a frustração ou a teimosia de uma criança é, muitas vezes, um reflexo de como essas emoções foram recebidas na nossa própria infância.
Se aprendemos que “meninos fortes não choram” ou que “meninas bonitas não fazem fitas”, é provável que sintamos um desconforto quase instintivo ao ver uma criança expressar-se livremente. Podemos, sem nos darmos conta, apressar o choro, minimizar a dor, exigir um “porta-te bem” sem percebermos que não é a criança que precisa de mudar – é o nosso olhar que precisa de se expandir.
Mas e se, em vez de repetirmos padrões, nos tornássemos conscientes deles?
A mudança não acontece com culpa, mas com curiosidade. Em vez de reagirmos automaticamente, podemos perguntar:
O que sinto quando esta criança expressa uma emoção forte?
De onde vem essa sensação? Fui autorizado/a a expressar essas emoções quando era pequeno/a?
O que esta criança precisa realmente de mim agora?
Cada vez que escolhemos pausar antes de reagir, cada vez que escolhemos responder com presença em vez de repetição, estamos a quebrar um ciclo. Estamos a permitir que as crianças cresçam num espaço onde não precisam de se moldar para serem amadas.
E isso transforma não só a infância delas, mas a nossa própria história.
Carpinteiro ou jardineiro? Duas formas de olhar para a infância

A psicóloga Alison Gopnik propõe duas metáforas para pensar no papel do adulto na vida das crianças: o carpinteiro e o jardineiro.
O adulto carpinteiro acredita que tem de moldar a criança até que ela encaixe num modelo ideal. Como um carpinteiro que esculpe madeira para criar uma peça perfeita, este adulto preocupa-se em formatar a criança, garantindo que ela “cresce direita”. Aqui, o foco está no controlo, na performance e na adequação a expectativas externas.
O adulto jardineiro, por outro lado, entende que a sua missão não é esculpir, mas criar um ambiente fértil onde a criança possa crescer de forma autêntica. Tal como um jardineiro cuida do solo, rega e protege as plantas sem determinar exatamente como cada flor ou árvore se desenvolverá, este adulto percebe que cada criança tem um percurso único.
Quando assumimos a postura de carpinteiro, olhamos para a criança e tentamos corrigi-la, guiando cada um dos seus passos para garantir que se torne aquilo que idealizámos.
Mas quando escolhemos ser jardineiros, oferecemos um espaço seguro e nutrimos a confiança para que ela floresça na sua singularidade, sem a pressão de atender às nossas projeções.
O que podemos fazer diferente?
A mudança começa com um olhar mais consciente e generoso. Não se trata de deixar a criança “fazer o que quer”, mas de observar quem ela realmente é – um ser inteiro agora, e não um projeto para o futuro.
Aqui estão alguns pontos que nos podem ajudar nesse caminho:
Observar antes de corrigir → Quando uma criança reage de forma intensa, podemos perguntar: "O que é que isto me faz sentir?" Antes de corrigirmos um comportamento, vale a pena percebermos o que ele nos ativa em nós.
Reparar nos padrões que herdámos → Será que repetimos frases que ouvimos em crianças, sem sequer questioná-las? “Engole o choro”, “Porta-te bem”, “Já és crescido para isso” – são mensagens que fazem sentido para nós hoje?
Dar espaço para a autonomia → Pequenos gestos diários, como deixar a criança escolher entre duas roupas ou tentar calçar os sapatos sozinha, criam um sentido de valor próprio e mostram-lhe que confiamos nela.
Relembrar que a infância não é um ensaio para a vida – é a própria vida → Em vez de nos preocuparmos se a criança será bem-sucedida um dia, podemos perguntar: "Ela sente-se segura agora? Conectada? Amada?"
Pequenos momentos, grandes mudanças
Quando uma criança sofre pela perda de um brinquedo, não é o objeto em si que tem valor absoluto, mas o que ele representa para ela naquele momento. Desde cedo, associamos coisas externas ao nosso sentido de identidade – e não somos apenas nós, adultos, que sentimos essa ligação profunda com aquilo que chamamos de “nosso”.
Se, no próximo momento de frustração infantil, conseguirmos pausar por um instante e ver a criança como um ser humano inteiro, que sente e processa o mundo com a intensidade de um primeiro encontro, talvez consigamos fazer diferente.
Talvez possamos, juntos, construir uma infância mais livre, mais respeitosa, mais humana.
E se tudo começasse com um simples mudar de olhar?
Educar não é moldar. É regar, nutrir e confiar. Porque as crianças não precisam de se tornar alguém. Elas já são.
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