Infância e Pandemia
- Sara & Felipa Educa_são

- 6 de nov.
- 6 min de leitura

Todas as Infâncias Importam
Se nos acompanhas há algum tempo, sabes que este projeto nasceu durante a pandemia. Sabes também que, desde o início, nos comprometemos com uma missão clara: defender a infância. Toda a infância. Com profundidade, escuta e contexto.
Esta semana, os nossos conteúdos sobre as crianças da pandemia geraram muita conversa, como sabíamos que iriam gerar. Vieram mensagens de identificação, de alívio, de validação. Mas também vieram desconfortos, críticas e até alguma dor.
Por isso, este texto não é para dramatizar. Muito menos para criar divisões. É para aprofundar.
O que nos dizem os estudos?
Ao longo dos últimos dois anos, vários estudos internacionais começaram a relatar os efeitos do início de vida em contexto pandémico, sobretudo nas crianças nascidas em 2020 e 2021. O que sabemos até agora? (ver estudos e relatórios no final do texto)
Um estudo longitudinal da Brown University (EUA) mostrou uma redução nos indicadores de desenvolvimento cognitivo em bebés nascidos durante a pandemia, mesmo sem infeção por COVID-19. A ausência de interação social alargada, a menor estimulação verbal e o aumento do stress parental parecem ser fatores relevantes.
Estudos do Reino Unido (Ofsted Reports) alertaram para dificuldades linguísticas, emocionais e relacionais em crianças que entraram na escola nos anos seguintes à pandemia, especialmente nas mais novas — as que estavam em idade pré-linguagem durante os confinamentos.
UNICEF e UNESCO têm publicado relatórios a alertar para os efeitos da pandemia no desenvolvimento emocional e educacional das crianças, lembrando que os impactos não são iguais para todas, mas que existem padrões comuns de preocupação.
Nada disto significa que todas as crianças estejam em dificuldades. O que significa é que há padrões que precisamos de observar com atenção. Porque, como sabemos bem, o que é invisível à primeira vista nem sempre está ausente. E é para isso que queremos chamar a atenção.
Não se trata de culpa. Trata-se de contexto.
Cada família viveu a pandemia com os recursos que tinha. Cada profissional fez o melhor que sabia. Cada criança atravessou esse tempo com as condições que estavam disponíveis.
Algumas famílias puderam estar mais juntas. Outras viveram o medo na linha da frente. Algumas crianças nasceram em casas cheias de afeto. Outras nasceram em hospitais onde os partos foram solitários, os rostos estavam tapados e o toque era vigiado.
O que dizemos é: tudo isso conta. Porque o corpo de uma criança é feito de experiências. E, mesmo quando tudo parece "normal", algumas crianças carregam no corpo memórias sensoriais que ainda não conseguem nomear, mas que se mostram em forma de agitação, insegurança, dificuldades de regulação ou na relação com o outro.
E agora que estas crianças estão a chegar à escola?
Muitas delas parecem cognitivamente "prontas", algumas até surpreendem pelo vocabulário, pela memória ou pelos interesses. Mas os profissionais de educação e saúde infantil relatam um aumento claro de desafios emocionais e relacionais: ansiedade, baixa tolerância à frustração, dificuldade em esperar, maior reatividade corporal.
E não, isto não é para diagnosticar ou rotular. É para escutar. É para garantir que não estamos a olhar só para o que se vê, mas também para o que está por trás.
Hoje, queremos aprofundar essa conversa. Não para alarmar, nem para generalizar. Mas para ampliar o olhar. Porque estas crianças (agora com 5 ou 6 anos) começam a preparar-se ou a dar os primeiros passos no ensino formal. E precisam que estejamos atentos. Não só ao que sabem ou não sabem. Mas ao que viveram. E ao que ainda mostram, mesmo sem dizer.
Durante o confinamento, os primeiros estímulos destas crianças foram profundamente marcados pelo contexto em que nasceram:
Partos com restrições à presença de acompanhantes;
Separações iniciais por motivos de segurança sanitária;
Profissionais de saúde mascarados, com contacto físico vigiado;
Rostos cobertos nas interações sociais;
Isolamento familiar ou ausência de rede de apoio;
Ambientes de stress prolongado em casa, ainda que com amor presente.
Estudos recentes, em países como os EUA, Reino Unido e Alemanha, onde as crianças da pandemia já entraram no ensino formal, começam a apontar algumas tendências relevantes:
Maior prevalência de dificuldades emocionais, como ansiedade e regulação afetiva;
Menor tolerância à frustração e menor autonomia relacional;
Desenvolvimento linguístico e comunicacional mais lento em contextos com menos interação direta e visível (rostos mascarados, menor convivência);
Impactos subtis na atenção sustentada e na capacidade de autorregulação corporal.
É importante sublinhar: estas observações não são sentenças. Nem significam que "todas" as crianças da pandemia apresentam dificuldades. Pelo contrário, muitas floresceram em casa, com maior disponibilidade dos cuidadores, rotinas ajustadas ao seu ritmo e um ambiente seguro.
Mas para que possamos cuidar melhor, precisamos reconhecer as marcas invisíveis que o tempo da pandemia deixou em algumas infâncias, e saber que elas podem manifestar-se de formas diferentes:
Num corpo mais agitado;
Num comportamento mais desorganizado;
Num medo persistente de separação;
Numa dificuldade de escuta ou relação;
Numa atenção fragmentada ou hipervigilância.
E os adolescentes?
Embora o nosso foco hoje esteja nas crianças mais novas, não podemos esquecer um grupo frequentemente invisibilizado nesta conversa: os adolescentes. Aqueles que "já eram crescidos", mas que estavam a viver marcos essenciais do seu desenvolvimento emocional, relacional e identitário.
Muitos perderam rituais de passagem, contacto com os pares, liberdade de exploração e erro. Perderam o espaço para crescer longe do olhar dos adultos, essencial na construção da autonomia saudável. As marcas, em muitos casos, ainda estão por mapear — mas os relatos de pais, terapeutas e escolas são claros: há uma fragilidade emocional nova, silenciosa e profunda, que não pode ser ignorada.
Voltaremos a este tema em breve. Mas hoje, centramo-nos nas crianças que agora chegam à escola.
Queremos agora escutar a tua voz
Se trabalhas com crianças entre os 3 e os 7 anos:
O que tens observado?
O que mudou nestas crianças?
Sentes diferenças no brincar, na comunicação, na forma de estar?
Se és mãe, pai, cuidador :
como foi esse tempo?
Como o sentes refletido hoje?
Que sinais te surpreenderam, para o bem ou para o desafio?
Podes responder diretamente a este texto, ou juntar-te à nossa partilha no canal do WhatsApp.
A nossa intenção é clara: abrir espaço para uma escuta mais profunda, mais humana e menos automatizada. Porque a infância pede presença. E pede contexto.
O que podemos fazer?
Enquanto aprofundamos esta conversa em conjunto, algumas coisas que podem ajudar no dia a dia:
Validar emoções sem tentar "resolver" tudo imediatamente — às vezes, ser visto é suficiente;
Criar rotinas previsíveis que ofereçam segurança e estrutura;
Permitir movimento e expressão corporal — o corpo também precisa de falar;
Procurar apoio especializado quando necessário, sem vergonha ou demora;
Lembrar que ajustar expectativas não é baixar a fasquia — é respeitar o tempo de cada criança.
Não há receitas. Há presença, escuta e ajuste contínuo.
Uma responsabilidade coletiva
Se as crianças estão agora a iniciar a escola, temos o dever de garantir que ela as acolhe, não só cognitivamente, mas emocionalmente e corporalmente também.
Este projeto nasceu da pandemia, e com ela aprendemos que a escuta é a primeira forma de cuidado.
Obrigada por estares connosco nesta jornada.
Estudos e relatórios que informam esta reflexão
UNICEF – "Preventing a lost decade: Urgent action to reverse the devastating impact of COVID-19 on children and young people."
UCL Institute of Education (UK) – COVID-19 and Early Years Development Studies.
Valkanas, H. et al. (2025) – Impact of the COVID‑19 era on preventative primary care for children 0–5 years old: A scoping review. BMC Primary Care.
https://bmcprimcare.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12875-025-02913-y
Nazzari, S. et al. (2024) – Pandemic babies: A systematic review of the association between maternal pandemic-related stress during pregnancy and infant development. Neuroscience & Biobehavioral Reviews.
https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0149763424001921
Proulx, C. M. et al. (2024) – COVID-19 Pandemic and Children's Development: A Review of the Evidence. PMC – National Library of Medicine.
SSRN Preprint (2024) – Early Learning and COVID-19: Long-term Effects of Pandemic Disruption.
Se quiseres receber mais reflexões como esta, continua connosco aqui na newsletter ou visita-nos no Instagram para mais partilhas.
Se esta reflexão ressoou contigo, e se tens uma criança entre os 5 e os 7 anos ou trabalhas com esta faixa etária, queremos convidar-te para o nosso Workshop “Do Gesto à Letra”.
Um espaço de pausa, escuta e observação profunda sobre a prontidão escolar das crianças da pandemia (e não só).
Vamos decifrar o corpo, o traço, o gesto e o tempo, antes das letras.
📩 As inscrições estão abertas.





Comentários