Durante os nossos próximos artigos do blog, como vos dissemos anteriormente, vamos-nos debruçar sobre o brincar das crianças. Digamos que é um assunto que nos preocupa e que consideramos de importância fundamental.
Uma das considerações sobre o brincar que temos cada vez mais escutado é a dos pais que se queixam que os seus filhos não sabem brincar, ou de que temos de ser nós, adultos, a organizar algo para as crianças fazerem, caso contrário, por si sós, elas não conseguem pensar em nada.
O que leva a parecer que, nos dias de hoje, a capacidade das crianças de brincarem está a desaparecer rapidamente, e muitos pais estão preocupados com essa incapacidade. Muitos acabam por comprar, e comprar, e comprar brinquedos para os filhos, pensando que essa será a solução. Acreditam que o problema está no estímulo exterior. Mas a verdade é que o excesso de brinquedos só piora a situação. A criança sente-se sobrecarregada com a abundância de brinquedos que tem e fica mesmo desorientada com tanto estímulo.
A criança pequena quer experimentar o mundo e aprender a viver nele; toda ela é um órgão sensorial, cada perceção, cada vivência toma conta do seu corpo inteiro. Essas impressões vêm descontroladas e sem filtros. A criança recebe essas influências sensoriais com todo o corpo, e este responde com diferentes tipos de movimento, imitando o seu redor. Ao brincar, a criança está a praticar a vida, está a aprender a ser, a conhecer o mundo e o outro, está a viver!
A imitação é a base para o desenvolvimento da imaginação e da fantasia, ou seja, do brincar.
Sendo assim, nós adultos temos que fazer um longo trabalho de observação e de autoeducação, para que possamos ser dignos de sermos imitados, quer os nossos gestos físicos quer os nossos gestos anímicos. Pois somos nós que a criança irá imitar e, na falta de adultos, quem imitará ela?
Isso leva-nos a pedir que reflitam connosco sobre algo simples, mas importante:
O que fazem os adultos hoje genuinamente? Que gestos tem a criança capacidade de imitar?
Onde podem as crianças alimentar-se dos gestos do fazer?
Raramente a criança hoje acompanha o processo de qualquer produção; tudo já vem feito, terminado e/ou embalado!
Para os adultos, a vida tornou-se mais prática e confortável. Para as crianças, tornou-se improdutiva e desvinculada da experiência.
Sabemos que os músculos que não são utilizados tornam-se fracos. E os sentidos?
Podem estes desenvolver-se para serem vivos e alertas quando nunca são usados e nunca encontram uma variedade de atividades?
E como pode a imaginação viver, essa misteriosa força criativa que uma criança traz consigo em abundância, quando ela não recebe nenhum alimento real ou estimulação através dos sentidos, mas apenas caricaturas do mundo?
Onde irá a criança com sua necessidade de imitação? Onde pode encontrar alimento para brincadeiras imaginativas?
Será que nós, pais, avós, educadores, sociedade em geral, estamos suficientemente conscientes de quão inacreditavelmente o mundo mudou desde a nossa própria infância? De quantas oportunidades para a experiência natural, que tínhamos como garantidas, então desapareceram?
Vamos lá nos debruçar sobre como promover o brincar saudável e verdadeiro. Aquele brincar que sai das nossas profundezas, aquele que nos torna saudáveis e felizes.
As crianças aprendem observando e imitando a vida ao seu redor. Assim que elas pensam que entenderam um processo de trabalho ou interação social, elas praticam-no na brincadeira. Sem exemplos, não há combustível para brincar. Na nossa sociedade, as crianças são pressionadas a encontrar exemplos inspiradores o suficiente para serem imitados e tornar-se em brincadeira.
Acreditamos que todos concordamos que a televisão definitivamente não fornece exemplos que queremos que nossos filhos copiem. Mas então, o que eles podem imitar?
Hoje em dia, a maioria dos processos de trabalho está escondida dentro de uma máquina onde, magicamente, com o apertar de um botão, o resultado final sai.
As crianças pequenas são curiosas, como exploradores ou cientistas, e toda a sua energia é direcionada para uma tarefa importante: elas precisam de elaborar as regras da vida na Terra e os guiões pelos quais as interações sociais são baseadas.
No entanto, com as máquinas e os brinquedos muito sofisticados, todas as suas explorações são interrompidas por uma embalagem que oculta as ações. Os seus sentidos exploratórios são então bloqueados. Oolho não pode penetrar no recipiente. O interior não pode ser explorado pelo toque. E tudo o que a criança ouve é o barulho de um motor, das pilhas ou pouco mais. E todos sabemos que a maioria dos adultos fica muito zangada quando a criança tenta desmanchar o brinquedo, quando deveriam na realidade se maravilhar com a curiosidade inata da criança em perceber como funciona o mundo!
Os nossos génios e inventores já foram crianças que tiveram a oportunidade de explorar ao brincar: o que podia ser feito com rodas, braços de alavanca, cordas e blocos, parafusos e afins.
E tornaram-se adultos com ferramentas a construir, consertar e reparar utensílios e mesmo os seus brinquedos. Quantas crianças veem isso hoje em dia?
Saber como usar um controlo remoto ou um tablet dificilmente pode fazer um pensador inteligente e original, senão seríamos todos uns génios! Mas permitir que uma criança explore todas as possibilidades do básico e inacabado, isso sim pode!
Se queremos que as crianças saibam mais do que apenas como usar as invenções de outras pessoas, elas precisam de poder experimentar os passos evolutivos que levaram às inovações modernas.
Isso requer que, em algum lugar do ambiente da criança, o trabalho antigo possa ser observado. Isso não significa que temos de nos livrar de todos os eletrodomésticos, mas que devemos envolver as crianças quando fazemos tarefas especiais em que elas possam ver algo a surgir desde o início. Em sã consciência, ninguém quer viver sem máquina de lavar roupa ou um aspirador!
No entanto, as roupas delicadas podem ser lavadas à mão e a criança pode ajudar. (Com o resultado de que tudo ficará encharcado depois, especialmente a criança!) Na área de cozinhar, há tantas experiências em que, se simplesmente mudarmos nosso foco de rápido e conveniente para saudável e satisfatório, a criança pode participar. Abandonemos, de vez em quando, os robots de cozinha, a máquina de fazer pão e a cafeteira de cápsulas e façamos as coisas à moda antiga. Acreditem que uma nova dimensão se abrirá para qualquer criança que viva e possa experienciar estes gestos do dia a dia contigo.
Examinem as vossas rotinas diárias do ponto de vista de darem exemplos significativos. Existe alguma coisa nas vossas vidas inspiradora e excitante o suficiente para ser copiada? Existe uma boa e velha culinária? Fazem algumas das vossas compras em pequenos lugares onde a interação humana acontece, onde a criança pode ver pesar, medir, trocar dinheiro mas também a troca de conversas? Há algum trabalho de jardinagem feito em vossa casa? Gostam de costura, tecelagem, tricot, crochet, carpintaria, marcenaria ou tocam algum instrumento? A criança visita lugares onde pode ver coisas do dia a dia a serem feitas do início ao fim?
Uma casa totalmente automatizada é muito limitadora para a inspiração do brincar. Exemplos que inspirem a exploração de toda uma gama de movimentos irão atrair uma ampla gama de brincadeiras e fortalecerão as habilidades de pensar.
Após o primeiro tipo de brincar, o explorar a fisicalidade das coisas; tocar, sacudir, cheirar, provar, para brincar a criança precisa de exemplos de humanos que trabalham para ela poder florescer.
As crianças observam e copiam a ação. A tentação de tirá-las do caminho é grande quando as crianças são pequenas, mas ao privá-las de participar e observar trabalho produtivo fisicamente, estamos a limitar o seu brincar.
Para que a brincadeira se desenrole de uma maneira natural, verdadeira e bela, a nossa função como adultos passa não só por cuidarmos dos nossos gestos, como do ritmo e do ambiente em que a criança está, e também dos materiais que lhe oferecemos. Do ritmo, já falámos da sua importância e dará sempre para mais uns quantos artigos, como este tema do brincar.
Agora iremos aprofundar um pouco sobre o ambiente e os materiais que podemos proporcionar às nossas crianças.
Que ambiente é necessário para a criança se ativar na brincadeira?
Há muitas evidências para apoiar a ideia de que, quando se trata de brincar, a forma como o ambiente é estruturado (ou deixado de ser estruturado) importa muito. Até certo ponto, as características do ambiente determinam a forma como as crianças vão brincar.
(...) tempo, silêncio e espaço; tempo para todo o desenvolvimento, silêncio para toda a voz, espaço para a vida inteira e todos os seus valores e coisas.
Rainer Maria Rilke
É necessário um ambiente bonito, natural, ordenado e organizado, de preferência com cores suaves e lisas nas paredes, um ambiente que irradie tranquilidade e segurança. Onde cada coisa tem o seu devido lugar e está agrupada. Só assim o espaço se torna acolhedor e convidativo a ser movimentado e ganhar vida.
[Segue-se uma secção para observação de imagens]
Acreditamos que as imagens falam por si. O que cada imagem te faz sentir? Onde te sentes impelido(a) a brincar?
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O ambiente, por si só, proporciona a vivência do limite, tão necessária para a criança. Se tudo está contido adequadamente, se cada coisa tem o seu lugar, a criança sente: eu também tenho o meu lugar!
O excesso de objetos e brinquedos é prejudicial, torna difícil e confusa a organização.
É bom termos cestas e caixas resistentes, onde podemos colocar os paus, raízes, pinhas, conchas, pedras. Um local para tábuas e objetos grandes. Também podemos ter tecidos e cordas.
É importante dentro do espaço também ter um ambiente onde a criança se possa recolher e vivenciar o seu interior, uma tenda ou outro espaço que ela goste de fazer/construir para estar só (ou não, como na imagem). Por vezes, o estar por baixo de uma mesa já é esse espaço.
O ambiente de dentro de casa, remete ao nosso interior, leva-nos à intimidade; e o ambiente de fora convida à abertura para o mundo, à admiração. (Deste falaremos mais em breve, mas podes ler um pouco sobre esse tema aqui . )
Por isso é importante as crianças brincarem ao ar livre e dentro de casa, e em quantidade equilibrada, pois demasiado expansão (exterior) pode causar medo e a contração em demasia (interior) pode criar pressão e stress às crianças.
O primeiríssimo objeto/brinquedo que a criança utiliza é o seu próprio corpo ( como já referimos); os dedos da mão e dos pés, e aos poucos vai-se expandido, vai agarrando objetos que estão próximos, que possa levar à boca, olhar, mover… E este são geralmente argolas de madeira, bolas, pequenas, rocas, tudo muito simples e de textura agradável.
O mesmo objeto que serve para guardar, como as caixas, ao brincar, pode ser um dos primeiros brinquedos também. Empilhado para construir pontes, torres, casas. Tal como os blocos, tronquinhos de madeira.
Ao empilhar objetos, a criança, para além de vivenciar o peso e o equilíbrio, vivencia a verticalidade, o seu primeiro desafio em direção à humanização do seu corpo; e daí ela repetir tantas vezes esse gesto do empilhar e derrubar.
Tal como o peso dos objetos, as crianças também devem experimentar a durabilidade e a fragilidade dos mesmos. Por isso é muito importante termos pratos de louça e copos de vidro, porque as crianças são capazes e devemos responder às suas habilidades e ajudá-las a desenvolve-las. Dar-lhes permissão para aprender as consequências naturais: - se deixar cair um copo, ele parte-se.
Não precisamos proteger as crianças das consequências da gravidade. Naturalmente, não queremos que andem a partir objectos, mas as quebras fornecem uma excelente oportunidade para aprender a limpar com segurança a partir de uma idade adequada, e as crianças aprendem assim a ajustar os seus movimentos para proteger a fragilidade do seu ambiente. Se tudo for de plástico e inquebrável, que aprende ela?
Ter tapetes ajuda a aquecer o ambiente e a trazer conforto. Muitos e diversos tecidos, panos, de seda de algodão, de linho, grandes, pequenos e médios, servem para que as crianças façam deles, roupas, guardanapos, camas, telhados de tendas… o que a imaginação lhes permitir. Cordões de trapilho e/ou lã, bolas, animais em madeira pouco definidos e claro, como já dissémos, cestos/caixas de diferentes tamanhos.
Com os panos e materiais da natureza, as crianças constroem lindas paisagens que podem ser completadas com animais, flores e pessoas feitas de cera de abelha ou com outros brinquedos que tenham.
As bonecas de pano, e bebés, também entram neste mundo da brincadeira. Na pedagia Waldorf os bonecos, feitos de tecidos de algodão, enchidos com lã e com feições suaves podem estar acordados ou a dormir; felizes ou tristes, o que proporciona à criança, o sentir as emoções/estados que desejar dentro da brincadeira. Não são apenas esteticamente mais agradáveis, apesar de sabermos que há várias opiniões, mas a sua suavidade e calor terão um efeito calmante numa criança pequena.
O que gostamos de oferecer às nossas crianças, são brinquedos naturais, simples, pouco definidos, ou seja, de fim aberto. E o que quer isso dizer?
Quer dizer que são brinquedos que as crianças, usam com diferentes propósitos, finalidades, que expressam o que lhe vai no seu interior, em que usam a sua imaginação para colocar, cor, forma, movimento, sentimento e calor nesse objeto, e com ele conquistam e constroem o mundo. O objetivo é dar resposta à necessidade da criança, naquele instante.
Os brinquedos também devem ser bonitos, porque a visão é tão importante quanto o tato.
Ao proporcionarmos à criança beleza, não estamos apenas a contribuir para o seu bem-estar, mas também a desenvolver a sua consciência e apreciação estéticas. Brinquedos feitos de materiais naturais, com cores ricas e naturais, e que são cuidadosamente feitas à mão, são convidativas e contribuem para o “sentido de vida” de uma criança. É muito mais provável que uma criança sinta reverência por um belo brinquedo feito à mão e cuide dele do que por um brinquedo de plástico produzido em massa.
No entanto, deixá-los tocar e serem expostos a muitos tipos de materiais e também às muitas variações dentro desse material (diferentes tipos de tecido ou madeira ou mesmo plástico, por exemplo), é importante vivenciar as diferentes texturas, trata-se só de encontrar o equilíbrio.
Outros itens que temos sempre à mão são os lápis e ou bastões de cera de abelhas, dependendo da idade, de boa qualidade, de cores vivas e fortes para que possam trazer ao papel toda a alegria e movimento desejado. As crianças começam por fazer desenhos grandes e de cores fortes.
Quando a criança tem livre acesso ao material de desenho, eles sabem muito bem o que querem desenhar. Com muito entusiasmo desenham grandes espirais, círculos, barras, escadas, o sol, e então, em algum momento, surge então uma cabeça com pernas.
Elas costumam dar explicações para os seus desenhos. Por isso vale a pena salvar todas essas obras de arte e rotulá-las com nomes e datas. Com elas aprendemos que as crianças passam por certas fases que são observáveis nos seus desenhos e pinturas, e estes são os mesmos em todo o mundo, independentemente de raça, sexo ou cultura.
Também é bom terem por perto aguarelas, papel, esponja, pano, godés e pincéis. Na pedagogia Waldorf fazemos aguarela em papel molhado, por toda a qualidade de fluidez que a água nos dá e pela vivência entusiasmante de cada cor. É preparado todo um ambiente de calidez, harmonia e tranquilidade. Utilizamos as cores primárias e com elas nascem lindas e maravilhosas manchas de cores. É sempre um momento mágico!
É muito interessante acompanhar seus estágios de desenvolvimento através do desenho, talvez seja alvo de um próximo artigo. Apenas não perturbem a criança quando ela estiver a desenhar ou a pintar. Claro, isso irá mudar quando as crianças estiverem em idade escolar.
Como já falamos, as crianças naturalmente querem imitar os adultos e as suas atividades diárias. Sendo assim, todos os dias devemos nos esforçar para sermos adultos “dignos de imitação” e trazer consciência aos nossos gestos enquanto nos perdemos nas tarefas diárias da vida, como cozinhar e limpar, varrer, passar a ferro, estender roupa, lavar o carro, etc.
Sabendo que as crianças vão imitar as nossas atividades, tentemos trabalhar sem pressa, com alegria e cuidado. E na medida do possível, deixá-las fazer parte delas.
E o brinquedo, como dissemos, esse deve nutrir os sentidos e ser bom para as crianças! Concentra-te e observa o tipo de brincadeira que cada brinquedo provoca, e assim perceberás se é um brinquedo necessário ou não.
Porque na realidade nada no brincar é sobre o brinquedo, mas sim sobre que tipo de brincadeira ele convida a fazer e que tipo de ambiente físico ele cria para a criança e para toda a família. O brincar não é realmente sobre o brinquedo, é sobre o que o brinquedo provoca na criança. Um bom brinquedo é 10% brinquedo e 90% criança.
Permite que a criança guie a brincadeira em vez do brinquedo orientar a brincadeira. E, com mais brinquedos abertos, menos é mais!
Carl Jung escreveu: “A criação de algo não é realizada pelo intelecto, mas pelo instinto de brincar."
Bibliografia:
- Eichler, Hannah - ( 2013). The Golden Key to Brilliancy. lulu.com.
- Petrakos, H., & Howe, N. (1996). The influence of the physical design of the dramatic play center on children’s play. Early Childhood Research Quarterly.
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