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Foto do escritorDulce Cruz, Felipa Vieira e Sara Gomes

Infância Interrompida: O Impacto das Separações Prolongadas nos Primeiros Anos

Atualizado: 22 de dez. de 2024

Notas: Para simplificar a leitura, designamos por “bebé” todas as pessoas na faixa etária dos zero aos três anos; e usamos “cuidador principal” para nos referirmos à figura de apego primária, geralmente a mãe, mas podendo ser qualquer adulto de referência próximo.


Nos primeiros anos de vida, o vínculo estável com uma figura de apego consistente é fundamental para o desenvolvimento emocional e cerebral das crianças. A teoria da vinculação, proposta por John Bowlby, evidenciou que relações seguras e estáveis oferecem uma base essencial de segurança emocional, promovendo o desenvolvimento saudável do cérebro e da personalidade.

Em contrapartida, ambientes que sobrecarregam cuidadores, impõem horários extensos ou não respeitam os ritmos naturais das crianças dificultam a construção de vínculos seguros. Isto pode levar a problemas como ansiedade, dificuldades em regular emoções e desafios em estabelecer relacionamentos saudáveis na vida adulta.



O Programa "Creche Feliz": Uma Mudança Necessária, mas Mal Implementada

Em 2022, o governo português lançou o programa "Creche Feliz" com o objetivo de ampliar o acesso às creches e apoiar as famílias. Embora aparentemente bem-intencionada, esta iniciativa tornou-se o marco inicial de uma desumanização progressiva dos cuidados na primeira infância.

Sob o pretexto de aumentar a capacidade de resposta, foram feitas alterações que se focaram exclusivamente na quantidade, negligenciando aspetos fundamentais da qualidade dos cuidados:

  • Aumento do número de crianças por sala: As novas diretrizes permitiram que cada sala acolhesse mais crianças, sem uma expansão proporcional da equipa de cuidadores. Em muitos casos, um único adulto passou a ser responsável por até dez crianças com idades entre 4 meses e 3 anos. Este rácio compromete a atenção individualizada e a responsividade às necessidades emocionais das crianças.

  • Adaptação e reconversão de espaços: Simplificaram-se os procedimentos para a instalação e ampliação de creches, permitindo a utilização de espaços previamente destinados a outros fins. A redução do espaço físico mínimo por criança trouxe sérios riscos ao bem-estar, comprometendo o conforto e a liberdade de movimento.

Estas mudanças suscitaram alertas de especialistas. O aumento do rácio criança-cuidador e a redução do espaço físico iriam inevitavelmente comprometer a qualidade dos cuidados.

A sobrecarga dos cuidadores dificulta a interpretação de sinais essenciais, como fome, cansaço ou desconforto, e impede interações calorosas e consistentes, fundamentais para o desenvolvimento emocional saudável.



A Portaria n.º 190-A/2023: A Consolidação do Problema

A Portaria n.º 190-A/2023, publicada em julho de 2023, consolidou estas alterações, permitindo oficialmente a ampliação do número de crianças por grupo, desde que fossem mantidas as áreas mínimas estabelecidas.

Esta medida acentuou as preocupações quanto à desumanização do cuidado infantil, tratando crianças como números a serem acomodados, em vez de seres únicos com necessidades emocionais e biológicas específicas.






O Modelo 24 Horas: Flexibilidade ou Desumanização?

Sob o pretexto de melhor atender às necessidades das famílias, promoveu-se a diversificação de serviços e horários, abrindo caminho para creches com funcionamento 24 horas.

Embora este modelo possa atender a algumas necessidades específicas, ignora por completo os princípios básicos do desenvolvimento infantil. Estruturas com funcionamento contínuo e indiscriminado desrespeitam os ritmos naturais das crianças, enfraquecem os vínculos afetivos e geram insegurança emocional.

O "Creche Feliz" transformou-se, assim, no prenúncio de uma abordagem industrial para os cuidados de crianças dos 0 aos 3 anos. Em vez de investir em qualidade, vínculos e ambientes humanizados, o foco recaiu sobre quantidade e flexibilidade, sacrificando o bem-estar infantil em nome de uma suposta modernização que, na verdade, desumaniza a infância.



O Dilema do "Uso Abusivo" do Horário Alargado

No âmbito do programa "Creche Feliz", com o financiamento do Estado, muitas creches exigem aos pais uma declaração que comprova os seus horários laborais para garantir que não há uso abusivo do tempo do bebé na creche.

Embora esta medida pudesse parecer uma forma de proteger a infância, trata-se, na verdade, de uma questão financeira. O Estado subsidia a estadia do bebé na creche como apoio aos pais trabalhadores e, portanto, apenas durante o horário laboral. O tempo adicional deve ser pago pelos pais em regime privado.

Embora este limite faça sentido por razões económicas e de justiça social, não há uma limitação equivalente para contextos privados. Em casos como o das creches da Fundação Pão de Açúcar Auchan, onde as crianças podem frequentar o colégio no máximo 11 horas diárias e cinco dias por semana, levantam-se questões preocupantes. Este tipo de limites são abusivos para a infância e comprometem o fundamental para o bom desenvolvimento infantil.



O Impacto Neurológico e Emocional das Separações Prolongadas

Do ponto de vista neurocientífico, os primeiros anos de vida são marcados por uma plasticidade cerebral extrema. Durante este período, experiências positivas ou negativas têm impactos duradouros no desenvolvimento.

Separações prolongadas ou frequentes entre o bebé e a figura de apego principal ativam de forma crónica o sistema de stress (eixo hipotálamo-hipófise-adrenal), levando ao aumento dos níveis de cortisol, a hormona do stress.

Este stress crónico pode alterar o desenvolvimento do sistema nervoso e causar danos em áreas críticas do cérebro, como:

  • Hipocampo: Prejudicado na sua função de memória e aprendizagem.

  • Amígdala: Sobrecarregada, intensificando o medo e a ansiedade.

  • Córtex pré-frontal: Afetado na capacidade de regulação emocional e no comportamento.

Por outro lado, a presença estável e responsiva de um cuidador promove a libertação de ocitocina, a "hormona do amor", que reduz os efeitos do stress, reforça os vínculos e apoia o desenvolvimento emocional saudável.



Soluções para um Cuidado Mais Humanizado

Proteger a infância significa colocar as crianças no centro das nossas decisões. Significa criar um ambiente onde o amor, o respeito e a presença possam florescer. Para isso, é urgente revermos as nossas prioridades enquanto sociedade e garantirmos que cada escolha reflete o compromisso com o bem-estar das nossas crianças.

É essencial dar-lhes o cuidado de que precisam, começando por reduzir o número de crianças por cuidador. Os primeiros anos de vida são únicos, e cada criança merece atenção personalizada, interações calorosas e alguém que veja nela muito mais do que um número.

As famílias precisam de mais tempo para cuidar e amar. Alargar as licenças parentais, flexibilizar horários laborais e apoiar cuidadores informais são passos indispensáveis para que os pais possam estar presentes e construir os laços que moldam a segurança emocional dos seus filhos.

E quando pensamos em creches com funcionamento 24 horas, devemos perguntar: será que estamos a responder às necessidades das crianças ou apenas às exigências do mundo adulto? Este modelo deve ser uma exceção, uma solução para momentos de emergência — nunca a norma. A infância não pode ser moldada por conveniências logísticas; ela exige presença, estabilidade e afeto.

Cuidar da infância é cuidar do futuro. É um ato de coragem e de amor que começa no agora.





Que Infância Queremos Cultivar?

Ao olhar para as escolhas que estamos a fazer enquanto sociedade, é essencial perguntar: estamos a criar uma infância que respeita os ritmos naturais das crianças e valoriza os laços familiares, ou a moldar um sistema que as trata como peças ajustáveis a uma lógica produtiva?

As crianças são sementes de um futuro que só florescerá se lhes dermos o terreno certo: amor, tempo, presença e cuidado autêntico. Estruturas e políticas que desumanizam os primeiros anos comprometem não só o desenvolvimento individual, mas também o tecido emocional e social das próximas gerações.

Que cada decisão que tomemos hoje seja guiada por esta visão. Afinal, as crianças não são apenas o futuro — são o agora que define quem somos.

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