Depois de uma partilha de ideias esta semana numa plataforma das redes sociais, ficámos verdadeiramente tristes e preocupadas com o que revelavam as respostas da maioria dos participantes. É desta partilha que surge este artigo que partilhamos convosco hoje.
Para vos situar, a partilha veio de uma mãe que questionava sobre a obrigatoriedade da sua filha frequentar o Jardim de Infância todos os dias, visto que desejava que a criança só fosse quatro dias, para estar com os avós um dia por semana. Para nós, esta pergunta nem teria razão de ser, visto todos nós, educadores, conhecermos as orientações do pré-escolar que, como o nome indica, não é escola e não é obrigatório.
Mas para os que podem não o ter presente, relembramos:
“Fundamentos e princípios da pedagogia para a infância - Considerando a unidade e sequência de toda a educação de infância dos 0 aos 5 anos, são apresentados fundamentos e princípios, que constituem uma base comum para o desenvolvimento da ação pedagógica em creche e jardim de infância. Estes fundamentos e princípios traduzem uma determinada perspectiva de como as crianças se desenvolvem e aprendem, destacando-se a qualidade do clima relacional em que educar e cuidar estão intimamente interligados. Intencionalidade educativa – construir e gerir o currículo - A ação profissional do/a educador/a caracteriza-se por uma intencionalidade, que implica uma reflexão sobre as finalidades e sentidos das suas práticas pedagógicas, os modos como organiza a sua ação e a adequa às necessidades das crianças. Esta reflexão assenta num ciclo interativo - observar, planear, agir, avaliar - apoiado em diferentes formas de registo e de documentação, que permitem ao/à educador/a tomar decisões sobre a prática e adequá-la às características de cada criança, do grupo e do contexto social em que trabalha. O desenvolvimento deste processo, com a participação de diferentes intervenientes (crianças, outros profissionais, pais/famílias), inclui formas de comunicação e estratégias que promovam esse desenvolvimento e facilitem a articulação entre os diversos contextos de vida da criança.” in Orientações Curriculares
E daí surge o nosso espanto, quando nos deparamos com os comentários que vários educadores deram em resposta: primeiro, vários assumem que não seria possível; outros, que iria prejudicar a criança, pois o JI (Jardim de Infância) é muito importante no desenvolvimento global da criança; outros ainda, que faz muita diferença uma criança que o frequentou, pelo menos a partir dos 3/4 anos, pois há competências essenciais que são adquiridas através das muitas atividades desenvolvidas no JI, outros ainda que o Jardim de Infância não é um depósito de crianças ao serviço dos pais, etc...
E a nossa conclusão a partir daqui só pode ser: coitadinhos de todos os adultos de hoje que nunca puseram os pés num jardim de infância, já para não falar dos nossos pais e avós! E como é possível a humanidade ter chegado aonde chegou, tendo apenas, até há cerca de 60 anos atrás, as famílias e comunidade alargada a supervisionar o bom desenvolvimento das suas crianças? (contém muita ironia)
Como podemos ficar tranquilas ao escutar colegas a defender que as aprendizagens no jardim de infância são fundamentais, subentendendo-se que só aí podem ser adquiridas, ou mesmo ao darem sugestões de alterar os dias com os avós em caso de existirem atividades cuja presença da criança fosse importante, pois leva-nos a questionar:
Quando é que, como sociedade, passámos a ter a família como o elo mais fraco para o desenvolvimento são e harmonioso da criança?
O que nos coloca outras duas questões: afinal, o jardim de infância está a servir as crianças ou os adultos? Em quem está verdadeiramente o foco?
Quando passamos a considerar que a frequência do Jardim de Infância é mais importante que o viver em família e as relações de afetos, que imagem da infância temos?
Onde ficou a participação dos diferentes intervenientes na tomada de decisões sobre o que é importante para o desenvolvimento sadio de cada criança como ser único que é?
Sabemos que os educadores, cuidadores e provedores vários das famílias têm tantas expectativas para enfrentar - da entidade patronal, das famílias, dos reguladores e da recente necessidade de apresentação de resultados de aprendizagem desejados, que por vezes pode ser fácil esquecer qual é o seu verdadeiro papel. Mas estamos aqui para vos lembrar que nós somos um complemento e um apoio da família e nunca deveríamos ter a pretensão de ser os seus substitutos.
Percebemos pela partilha que a grande maioria dos cuidadores tende a concentrar-se mais nos seus horários, rotinas e agendas do que nas próprias crianças, e que passaram a encarar o Jardim de Infância como mais uma etapa da escolarização obrigatória, formal e rígida. Mas que enorme perda isto é para todos os envolvidos!
A criança não é um projeto dos educadores, que temos que gerir. Ela é um ser humano único e sagrado, que os pais ou cuidadores nos confiaram, para os apoiar e com eles partilhar o processo do seu desenvolvimento, quando eles ou restantes adultos significativos não o podem fazer.
Ao longo destas décadas de trabalho com crianças pequenas, temos vindo a perceber que cada vez mais as exigências feitas têm tornado cada vez mais difícil, aos vários cuidadores, desacelerar e estar realmente com crianças, o que até nos leva a compreender porque perderam o foco.
A infância em espaços institucionais, nos últimos anos, está envolta em tarefas contínuas de organização e limpeza, planeamento, comunicação com a gestão e as famílias, a acrescentar às crescentes pressões para provar que as crianças estão a "aprender". E no nosso trabalho com crianças e educadores, sim, testemun
hamos como essas pressões competem pela atenção do adulto, dificultando o manter as crianças como centro do nosso trabalho. Mas não o podemos deixar acontecer!
A maioria de nós decide trabalhar com crianças pequenas porque amamos a sua visão de mundo, a sua curiosidade e possibilidades infinitas, e queremos compartilhá-la com elas. No entanto, com todas as demandas atuais, o que observamos é que passámos a ter de trabalhar nós, cada vez mais intencionalmente, para encontrar maneiras de estar verdadeiramente presentes com as crianças. Mas é possível!
Sabemos que VER realmente a criança no meio dos nossos dias atarefados exige tempo e prática. E a maioria de nós tem tantas a quem ver... E o que observamos é que uma grande maioria, acreditamos que quase inconscientemente, passou a apoiar-se em abordagens tradicionais, muitas vezes estéreis, de observar crianças em vez de ver apenas, olhar com o coração.
Que em vez de trabalhar para defender formas de estar verdadeiramente no mundo com as crianças, de ter tempo para ver os detalhes das suas formas incríveis de interagir com o mundo, de compartilhar a sua alegria e maravilhamento na exploração e descoberta, passou-se a focar em parâmetros e grelhas e a tentar encaixar cada criança numa caixa para ter a falsa sensação que a viu, e que a sua missão foi cumprida.
Mas partilhamos com vocês aqui que, o que nos tem sempre verdadeiramente inspirado, ao longo da nossa vida, e de inúmeras maneiras, é mesmo simplesmente estarmos a observar as crianças. Ao fazê-lo compreendemos intimamente que as crianças veem o mundo de uma maneira muito diferente da nossa. Que elas realmente ouvem, veem e experimentam mais do que qualquer adulto. Que elas aprendem melhor do que nós, e se prestarmos muita atenção e nos tentarmos colocar no lugar delas, temos um vislumbre da riqueza do mundo que muitos de nós parece ter esquecido. As nossas observações também levaram a uma compreensão mais profunda dos desejos e habilidades inatas com as quais as crianças nascem, o que lhes permite forjar ligações e amizades profundas, e o quão importante isso é para o seu aprender a ser.
Ver as crianças desenvolverem relacionamentos umas com as outras, com suas famílias e connosco dá-nos esperança para o futuro da humanidade e do trabalhar juntos na Terra, mas para isso é preciso tempo, é preciso deixá-las ser crianças… é preciso prioritizar o que verdadeiramente é importante.
Observar as crianças e compartilhar as histórias do que vemos melhorou o nosso trabalho como educadores e mães. Nós adultos somos sempre inspirados pelos detalhes das perspectivas das crianças.
A um nível prático, como dissemos, observar as crianças e realmente conhecê-las ajudou-nos a tornarmo-nos educadoras melhores. Ajuda-nos a sermos capazes de responder cuidadosamente no momento, a planear um ambiente cuidadoso e materiais que as crianças amam e com que possam verdadeiramente aprender, a partir sempre dos interesses delas, e a saber o que verdadeiramente é importante para o seu desenvolvimento harmonioso. Ajuda-nos a perceber que é tudo sobre elas e a nossa relação com elas, e as suas famílias, e que o que a criança pequena precisa é que simplesmente as deixem ser crianças, que as protejam e orientem, mas tendo sempre o seu interesse em primeiro lugar.
A profissionalização do campo da primeira infância afastou-nos do prazer das brincadeiras infantis, em vez disso, concentrou-nos em padrões e resultados de aprendizagem. Mas todos nós sabemos, ou deveríamos saber, que o que a criança precisa verdadeiramente é interiorizar o seu mundo ao brincar, nas suas relações e nas suas rotinas. E então colocamos aqui a questão: o que andamos nós adultos realmente a fazer?
A nossa realidade? Nós não conseguiríamos mais dedicar a nossa vida às crianças hoje se esse não fosse o nosso único foco. Muito sinceramente, acreditamos que preferíamos encontrar outra ocupação se tivéssemos de passar a trabalhar para os adultos e não para as crianças.
E porquê? Porque quando damos às crianças oportunidades de se envolverem em experiências ricas de brincadeira e organizamos o nosso dia e a nossa equipe de forma a que o nosso objetivo máximo seja podermos observar o que está acontecer à nossa volta, é inegável observar como os resultados desejados surgem ao nosso redor, quando cada criança tem o tempo e espaço para vivenciar o seu eu e nos mostrar as suas capacidades inatas e os seus desafios.
Além da nossa aprendizagem pessoal, sabemos que observar as crianças nos ajudou a desenvolver uma mente mais curiosa em geral. As crianças lembram-nos como é importante ser imaginativo, algo que precisamos desesperadamente para encontrar o nosso caminho neste mundo conturbado. Deu-nos a capacidade de sermos mais capazes de estar no momento em que estamos, quando estamos com crianças ou adultos, com os nossos filhos ou cada vez que entramos num espaço de primeira infância.
O que realmente queremos é que os adultos voltem a apaixonar-se pela infância e se surpreendam com o quão competentes elas são, e como elas sabem do que precisam. E de quão pouco elas precisam de nós realmente, quando tudo está pensado para elas.
Tornarmo-nos educadores mais conscientes ajuda-nos a trabalhar com mais intenção. Trabalhar e viver com mais intenção significa que assumimos o controlo da nossa vida, apesar das dificuldades que possam surgir, e não é esse o exemplo que queremos dar às nossas crianças?
A verdade é que deixamos que as nossas vidas sejam tão ocupadas e apressadas que facilmente ignoramos o que as crianças nos podem oferecer no sentido de realmente perceber o que está ao nosso redor. Tentar ver o mundo como as crianças veem é uma ótima caricatura para conviver com os hábitos, medos e o stress que preenchem os nossos dias. Por isso, pedimos: Pára, observa, e escuta, e vais ver que ela te dirá o que precisa realmente, e o que tu precisas realmente de ser, para seres o guia que ela espera que sejas.
As crianças pequenas merecem ter as experiências mais completas possíveis que se
equiparem às suas mentes vivas! E essas experiências estão todas dentro delas à espera de encontrarem o tempo, o espaço e a segurança para se desvendarem diante de nós, mas podem ser vividas em qualquer espaço e idealmente seriam sempre junto das suas famílias! E, se não o podem ser, é nosso privilégio proporcionar esse tempo, espaço e cuidado para elas. Mas nunca devemos ou podemos ter a pretensão de que somos mais importantes que a família na vida da criança.
Esperamos com isto deixar em ti a vontade de deixar de lado a "tua agenda" do que TU precisas fazer para as crianças ou fazer com que elas façam - mesmo que por apenas alguns momentos, para te deliciares e seres curioso(a) de novo. Esperamos que voltes a ver o teu trabalho como uma pesquisa contínua e empolgante, na qual mal possas esperar pela próxima surpresa ou descoberta das crianças ou tua! E esperamos que compartilhem com outros, que também têm crianças nas suas vidas, as histórias das vossas observações para sermos, cada vez mais, a defender o direito das crianças a uma infância rica e longa, e que possa, o mais possível, ser junto das suas famílias e quando não, com outros significativos que as respeitam e as defendem verdadeiramente!
Temos vindo a descobrir a importância e a urgência de ajudar os outros a voltar a realmente VER as crianças e as suas competências, pois esta é uma das abordagens mais poderosas para transformar as práticas de ensino e a parentalidade e incentivar as pessoas a viver uma vida mais alegre e harmoniosa. Juntas-te a nós?
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